Capítulos (2 de 7) 01 Oct, 2019

7 – O jardim negro

Já era tarde. Lem ainda não havia chegado em casa. Hana a convidara a passar a noite em sua casa, mas Lem sabia que só poderia descansar em seu próprio quarto. Ela queria ficar sentada no telhado, observar o horizonte e não pensar em nada. A rua estava escura, e uma brisa fria soprava no silêncio. Lem apertou o passo. A sua casa ficava a dois quarteirões de distância da casa da avó, e no caminho, haviam apenas casas pequenas. Lem olhava para elas com um pouco de inveja. Ela também queria morar numa casa pequena. Devia ser mais confortável. As ruas eram largas, asfaltadas, e as calçadas tinham cerca da metade da largura da rua. O piso das calçadas era padrão em quase toda a cidade. Os postes de luz eram bem trabalhados e bonitos. A coluna de apoio era circulada por um relevo em espiral, fazendo parecer que havia uma cobra enrolada no poste, e lá na ponta, tinha uma caixinha de vidro, que mantinha dentro de si uma lâmpada forte de luz amarelada. Não havia muitas árvores na rua, mas as poucas que tinham eram bonitas. Não eram grandes, tinham sempre a altura de uma casa, no máximo. Lem nunca tinha saído à noite, embora sempre a observasse do teto de seu quarto. Era gostoso, embora um pouco assustador. Lem estava ficando com frio, então abriu sua mochila e pegou seu casaco azul claro que estava guardado. Antes de terminar de vestir, já estava na esquina de sua casa. Mas algo estava diferente na visão da frente da casa. Algo que Lem não esperava ver ali. Sua mãe, Sarah, estava encostada, esperando na porta da casa. – minha mãe estava me esperando? Não achei que veria essa cena... –

- Lem. Está tarde, onde você esteve? – Sarah perguntou em voz baixa quando Lem se aproximou mais.

- Estava na casa da avó Hana. Parei lá depois da escola.

- Entre logo. – ela disse fazendo um sinal com o dedo na direção da porta. Lem passou por ela sem encarar seu rosto, mas sentiu um puxão quando deu as costas à mãe.

- Eu tenho que sair. Seu pai também... Saiu. – ela parecia estar escondendo alguma coisa – Os empregados foram embora. Você vai ficar sozinha em casa... – Sarah disse ainda com a voz baixa, segurando com a mão direita a ponta do casaco de Lem. Ela ficou em silêncio por um minuto como se ainda quisesse dizer algo, então respirou fundo. Lem virou o rosto para ela.

- Não acredite em nenhum Winter. Seu pai não devia ter feito isso... – Lem notou no rosto da mãe que ela parecia preocupada. Ela estava preocupada com a filha? Lem se surpreendeu. Sarah soltou Lem e virou-se. Resmungou algo sobre ter uma emergência e se pôs a andar. Lem observou até a mãe sumir pelas ruas escuras, então fechou a porta.

- O que foi isso, afinal? Uma demonstração de preocupação? Bom, é claro que eu não confio em nenhum Winter. Shiree é um deles... Pela primeira vez eu concordo com ela. Meu pai não devia ter feito aquilo. Pra onde será que ela foi? Pra onde foi todo mundo? Só me deixaram sozinha... Ao menos posso comer o que quiser. –

Lem subiu para o seu quarto, Largou a mochila e o casaco num canto da cama e desceu novamente as escadas para o hall de entrada. Começou a examinar cada cômodo da casa para ter certeza que estava sozinha. Tudo vazio. Lem foi até o seu banheiro particular e tomou um demorado banho, depois foi para a cozinha e procurou alguma coisa para comer. Achou um pote com doces em um dos armários e subiu em cima da mesa para se sentar. Cruzou as pernas e colocou o pote com docinhos pequenos em forma de quadradinhos sob as pernas. Ela comeu um a um, tentando aproveitar o sabor, e deixou um pouco no fundo do pote para comer depois. Após terminar de comer, Lem estava voltando para o seu quarto quando teve uma idéia. Ela girou sob os calcanhares e seguiu na direção do quarto dos pais. A porta estava aberta. Essa era a chance. Lem colocou o rosto para dentro do quarto para certificar-se que estava vazio, então abriu a porta e entrou. O quarto era grande. Tinha uma cama de casal com lençóis brancos bem no centro, com um pequeno tapete de cada lado. De frente para o pé da cama, o closet ocupava toda a parede leste do quarto. De um lado do quarto tinha uma mesa com um grande espelho e alguns vidros de perfume e maquiagem, do outro lado, uma mesa com uma pequena lâmpada e quatro gavetinhas. Essa estava cheia de papéis. Lem foi até a mesa do seu pai e começou a olhar os papéis. Todos, um a um. Documentos da casa, fichas de negócios, anotações. Não tinha nada ali sobre o casamento ou sobre os Winter. Lem continuou olhando até que achou uma folha velha, meio amarelada, dobrada no meio de tudo. Desdobrando-se, era a planta de uma casa. Um papel grande, escrito à mão, do tamanho de seis folhas normais. Lem observou as plantas para tentar reconhecer de onde era. Não era de sua casa. Ela leu no canto do papel. “Propriedade de Ciere Winter.” Winter. Era a planta da casa do Shiree? Tinha um quarto que estava riscado com caneta. Além de outras marcações em vermelho em volta da casa. Lem levou o papel até o seu quarto, pegou algumas folhas em branco e redesenhou a planta toda para si. Inclusive marcou o mesmo quarto para saber qual era depois. Pronta a cópia, voltou ao quarto de seu pai, e deixou o papel dobrado onde estava. Ela decidiu passar o resto da noite em seu quarto, pra não levantar suspeitas. Lem pretendia mostrar o mapa copiado para Lilly e Duo no outro dia, então foi pegar sua mochila para guardar as folhas lá dentro. Quando ela abriu a mochila, se lembrou que ainda tinha o livro que pegara da biblioteca da escola. Cortesia do Shiree. Lem guardou as seis folhas do seu mapa copiado dentro de um caderno, e colocou tudo na mochila

cedo e já estava vestida para ir à escola bem mais cedo que de costume da escola, então a jogou num canto e começou a ler o livro do Shiree. Ela foi dormir bem tarde naquela noite. Mesmo já tendo lido ele algumas vezes, ele era divertido. Lem gostou de finalmente ter ele pra si.

Na manhã seguinte, Lem acordara. Ela checou sua mochila pela ultima vez, para se certificar que o mapa e o livro que estava lendo estavam ali, então jogou a mochila nas costas e saiu de seu quarto com passos largos. Ainda não tinha ninguém em casa, mas Lem não se importou realmente com isso. Ela ia direto à escola hoje. Ficar na casa da avó não era muito animador no momento. Quando estava perto da colina com as flores, Lem percebeu que ainda era bem cedo, então decidiu parar um pouco na colina. A estrada fazia uma curva fechada contornando a parede de pedras que levava até a escola. Da beira da estrada até a ponta da colina, tinha um pequeno gramado, e na beira, uma barra de ferro que corria por toda a colina para impedir que alguém caísse lá de cima. Ela abriu o livro que estava lendo e ficou sentada na beira da colina, a cabeça apoiada na barra de proteção e as pernas balançando na direção das flores. Alguns minutos passaram, e Lem fechou o livro para continuar o caminho para a escola. Quando levantou sua cabeça, na direção do campo aberto e florido, notou uma silhueta ao longe. Uma pessoa, perto da grande árvore que ficava no centro do campo. A silhueta estava defronte à árvore, e estava balançando os braços como se estivesse falando com alguém. Então surgiu outra pessoa, provavelmente estava encostada na árvore num ângulo fora de sua visão. Essa outra pessoa colocou um braço sobre as costas da primeira, e num movimento, ambos viraram e começaram a andar na direção oposta. Pra onde estariam indo? Depois do campo não havia só o mar? Lem ignorou esse pensamento, e pôs-se de pé. Fez o resto do caminho sem nem pensar naquilo. A escola já estava cheia de gente, andando pra lá e pra cá. Lem foi procurar Duo e Lilly. Provavelmente já estavam na sala de aula. Ela andou sem olhar para os lados. Ninguém olhava de volta mesmo. As meninas não gostavam dela porque a achavam arrogante, e os meninos tinham medo de se aproximar. Lem foi direto para sua sala, e só olhou para o lado quando ouviu um barulho num corredor e viu um grupinho em volta de uma menina. O menino grande que prendera Lem e os outros na biblioteca no outro dia estava tentando trancar a porta do banheiro novamente, mas a menina que precisava entrar ali parecia estar tentando usar da mesma abordagem que Lilly usara da ultima vez. Quando o menino se virou para rir para os colegas, a garotinha lhe deu um soco perto do olho esquerdo. Todos pararam para olhar, mas a menina já tinha corrido para dentro do banheiro. Lem deu de ombros e continuou seu caminho. Entrou na sala e viu Duo e Lilly nos lugares de sempre. Mas havia um menino sentado na cadeira que costumava ser dela. Lem deduziu que fosse o menino que Duo comentou. Os três estavam quietos. Duo estava apoiando a cabeça no braço, e olhando para o nada, Lilly estava com a cabeça baixa e as mãos debaixo da mesa, e o outro menino estava encostado e relaxado na cadeira, com uma expressão serena. Fui até perto dele e deixei a mochila cair do ombro para o meu braço, fazendo cara de poucos amigos sinalizando um “cai fora, é meu lugar”, mas ele não percebeu.

- Oi... você está sentado na minha cadeira. Não tem outro lugar vazio na sala então acho que você devia pedir ao professor te trazer mais uma mesa.

- Oh... é verdade, ele tinha dito que iria trazer outra mesa. Ok, estou saindo. – ele falou sorrindo um pouco, como se estivesse de bom humor. Mas se levantou e andou na direção da porta da sala.

- Aliás... meu nome é Gilbert, prazer. – ele virou no calcanhar sem me encarar realmente e não me esperou responder pra sair da sala. Eu não ia mesmo responder.

- Oi. – disse em voz alta, para que ambos ouvissem, mas demorou um pouco para responderem.

- Como você está Lem? Por que não veio à aula ontem? O fantasma do cabelo branco tava te assombrando? – Lilly me perguntou casualmente

- Mais ou menos. Você sabe por que tinha alguém esquentando minha cadeira? – perguntei como se não soubesse do aluno novo. Duo não devia ter contado e presumi que não ele queria que eu contasse que nós tivemos aquela conversa.

- Ele te respondeu. É o Gilbert. Aluno novo. – ela virou a cara e voltou pra posição que estava antes. Acho que toquei num assunto delicado. Ela parecia não querer falar dele. O que rolou aqui afinal? Eu falto um dia e tudo muda?

- Como você está, Lem? – Duo me perguntou em voz baixa. Eu me virei para responder.

- Acho que bem. Acabei esquecendo um pouco aquele assunto. Ao menos por hora. – era verdade. Me distraí com o livro e acabei me esquecendo do assunto por um tempo. – Você já falou com a Lilly? Ela ta quieta. Isso é incomum.

- É. O Gilbert não falou com ela hoje. Nem ela com ele.

- O silêncio esta no ar então? – Lem cruzou os braços, pensativa. Lilly estava imóvel. O que havia acontecido entre ela e o tal de Gilbert? Depois de alguns segundos de silêncio, Duo encostou-se na cadeira, fez cara de quem se certificava que não havia mais ninguém na sala e falou alto para Lilly escutar.

- O que você tem com aquele cara, Lilly? Ta interessada nele?

Lilly se virou bruscamente. Estava com uma expressão de raiva que atingiu Duo como um empurrão. Duo recuou e desviou um pouco o olhar, mas parecia haver fagulhas entre os dois.

- Não precisa se sentir responsável. Eu te faço o favor de poupá-lo dos meus problemas. – essa era uma reação que eu não esperava da Lilly. Duo também se surpreendeu.

- Hei, não precisa desabar em mim a raiva que você sente de outra pessoa. – Duo levantou a voz. Eu não estava acostumada a ver aquilo.

- Há, claro que não preciso. Afinal você não tem mesmo nada a ver com isso. – Lilly se virou por um momento. Abaixou a cabeça e parecia estar se concentrando. Encheu o peito de ar, soltou rapidamente e depois voltou a encarar Duo.

- Eu não sei o que você espera de mim se considera nossa amizade um fardo, mas agora sou eu quem não quer carregar fardos. Não me pergunte nada disso, por favor. – quando terminou de falar, ela se virou novamente.

- Você está errada. Não disse que nossa amizade era um fardo. – Duo parecia abalado - Você... Não costuma agir assim... Ele fez algo para você...?

- Ele não fez nada! – Lilly virou o rosto para Duo novamente, e ele desviou o olhar. Eles ficaram em silêncio por um tempo. Ambos pareciam irritados agora. Duo cruzou os braços e virou o rosto para a janela. Lilly abaixou a cabeça, com o corpo ainda virado na direção de Duo.

- O que aconteceu ontem? – no meio da discussão, tentei não direcionar a pergunta a ninguém.

- O Duo ficou chateado porque não aceita que eu possa falar com mais alguém...

- ELE TE BEIJOU.

Gilbert já estava na sala quando Duo terminou de falar. Ele olhou para Duo, e dele para Lilly. Lem não conseguiu não fazer o mesmo. Duo olhou para Gilbert, e fechou os olhos fazendo uma careta de quem punia a si mesmo. Lilly voltou à posição que estava. Gilbert pegou a cadeira que estava trazendo e levou até um espaço que havia atrás da Lilly. Ele ficou ao lado de Duo. O clima já estava tenso o bastante sem isso.

-Ótimo. Se antes haviam fagulhas, agora podia ser considerado uma tempestade. Caramba, eu fiquei fora só um dia... -

Gilbert não estava ajudando. Ele parecia estar com o humor ainda melhor depois de ouvir aquilo. A sala já estava cheia agora, e o professor estava deixando seus livros sobre a mesa para começar a falar. Duo passou a maior parte das primeiras aulas deitado sobre os braços. Lilly estava abaixada sobre o caderno, parecendo muito concentrada. Lem ficou com a sensação de que algo não estava certo. Foi uma surpresa saber que Lilly permitira ser beijada por alguém que ela nem ao menos conhecia. O que ele teria dito a ela para conseguir isso? E por que Lilly parecia confusa? O tempo passava devagar para eles. Lem dava uma olhadinha para Lilly às vezes, mas não se virou para encarar Duo. Achou que ele preferia que não olhassem para ele. Umas duas vezes, Lem ouviu Duo suspirar incomodado. Estava perto da hora do intervalo, e todos os alunos da sala estavam conversando ou fazendo bagunça. O professor já estava empilhando seus livros para sair da sala. No momento que o barulho do sino começou, Lilly levantou-se rápido da cadeira e saiu da sala antes da maioria dos outros alunos. Lem finalmente virou-se para encarar Duo, mas seu olhar passou primeiro em Gilbert. Ele tinha uma expressão calma e um pouco confusa, como se não soubesse quem havia causado a confusão toda. Lem fez cara de brava para ele, mas recebeu um sorrisinho confuso em troca. Duo parecia chateado. Lem o cutucou no ombro e apontou para a porta, fazendo sinal para acompanhá-la. Duo concordou e se levantou da cadeira. Ambos saíram da sala sem olhar para Gilbert. Duo estava acompanhando Lem, então ela o levou para um lugar que ela sabia que não haveria ninguém. Eles pararam na frente da porta arranhada da biblioteca secreta da mansão. A sala em que falaram pela primeira vez com Shiree. Lem quase brigou consigo mesma por não pensar em outro lugar melhor. Lem abaixou a maçaneta da porta, mas estava trancada. Então eles encostaram-se à porta e se sentaram no chão.

- Dá pra acreditar? A Lilly conhece o cara num minuto e no outro ele a beija. Estaria tudo bem se ela tivesse batido nele, mas ela não fez nada. Ela deixou. – Duo estava irritado. Lem deduziu que era ciúmes.

- Você viu tudo? – Lem era a única que não estava por dentro da história.

- Vi o começo. Quando estava indo embora ontem, vi os dois conversando perto da estátua do anjo. Ela estava de costas pra mim, não me viu. Mas eu vi o Gilbert puxando ela. Até os outros alunos que estavam indo embora pararam para olhar.

- Acho que os olhos negros do Gilbert não conquistaram a Lilly. Ele deve ter pegado ela de surpresa e a deixou sem reação. Não seria estranho. É a primeira vez que um menino se aproxima da Lilly tratando ela como mulher... Você sabe... ela dá medo.

- ... – Duo fez uma pausa. Estava concentrado em algum pensamento.

- Se fosse só isso não importaria. - Duo se levantou num único movimento e seguiu o corredor até voltar para a sala de entrada da escola. Lem decidiu deixar ele sozinho um pouco. Levantou-se e começou a caminhar. Havia um lugar que ela costumava ir quando ainda não conhecia Duo. Nos fundos da casa, onde um dia foi um jardim, mas agora só restaram os cercados das plantas e solo seco onde parecia que não podia crescer nada. Lem costumava ir ali para brincar quando era criança. Não eram todas as crianças que gostavam dali. Normalmente, elas ficariam um pouco assustadas. O lugar era escuro, pois o segundo andar da escola barrava qualquer raio de sol que quisesse iluminar o jardim durante a manhã, e durante a tarde, o muro em volta era quem fazia esse trabalho. Só durante o meio dia aquele lugar devia receber iluminação. Quem construiu aquele lugar não tinha mesmo a intenção de manter um jardim, afinal, plantas precisam do sol. No centro havia uma grande árvore. Lem não fazia idéia de que árvore era aquela, já que estava sempre seca e às vezes até parecia morta. Mas era ali debaixo dela que Lem gostava de ficar sentada nos horários de intervalo. Até que um dia, outra pessoa também começou a se sentar ali. Não necessariamente no mesmo lugar que Lem, no entanto. Lilly estava sentada no galho mais alto que podia agüentar uma pessoa. Lem a notou desde a primeira vez que Lilly foi para lá. Elas continuaram a passar horas juntas por vários dias sem se falar, até que Lilly perguntou a Lem sobre um livro que ela levara para ler debaixo da árvore, dizendo que já o havia lido e gostara. Elas acabaram comparando os gostos e se tornaram amigas. Depois, elas não voltaram mais para aquele lugar, começaram a passar os intervalos na sala de aula. Lem foi para lá depois de deixar Duo. Ela se sentou debaixo da grande árvore morta, agora bem mais velha e quase se quebrando, e fechou os olhos por um momento.

- Quer que eu te deixe sozinha? – Lem falou ainda sem abrir os olhos.

O barulho surpreendeu Lem, fazendo-a abrir os olhos instintivamente e se levantar. Lilly, mesmo do galho mais alto da árvore, havia pulado para cair perto de Lem. Ela pousou e se levantou como se nada tivesse acontecido. Ela jogou o peso do corpo numa das pernas. Então tirou um lencinho do bolso e prendeu o cabelo com ele, amarrando-o como um chapéu. Ela gostava do cabelo assim. Depois se aproximou de Lem, apoiou uma das mãos na cintura e virou o rosto como se estivesse falando algo óbvio.

- Não. Está tudo bem. Só que agora eu to brava com o Duo também. – ela falou no mesmo tom de sempre.

- Ele falou demais. – Ela concordou – Mas acho que também viu demais... Ele não deixou de ser o cara de sempre, só está meio confuso. O cara é muito fechado, até dá pra entender ele reagir assim. Dá um tempo pra ele.

- Eu sei. Com ele o negócio é momentâneo. Agora com o Gilbert... – ela parecia irritada de falar o nome dele. Era a reação que Duo estava esperando dela.

- Ele chegou mesmo tão longe?

- Pois é. Eu dei atenção pra ele, achei que fosse um cara legal. Na hora da saída ontem, ele me acompanhou até perto da estátua. Estávamos só conversando. Ele me perguntou se poderíamos nos considerar amigos, eu respondi que sim. Não via motivo para dizer não. Então ele sorriu e disse “Legal, então já podemos seguir em frente”, e depois... – Lilly suspirou – fiquei sem reação, droga. Na hora não soube o que fazer, e acabei me pegando pensando nisso até a hora de dormir. Hoje de manhã, eu havia decidido que ia olhar para ele e depois pensar em algo para fazer, mas o Duo me deixou irritada.

Elas ficaram em silêncio por alguns minutos. Lem sentou-se abraçando as pernas. Lilly ao menos tinha uma escolha. Ela podia não falar mais com Gilbert, ou até bater nele até se sentir satisfeita. Lem ainda estava amarrada à Shiree. O pensamento repentino em Shiree fez Lem se lembrar do rosto dele enquanto falava dela com charadas.

- Ahh... Você devia bater nele ou algo assim. – Lem sugeriu para Lilly.

- Nossa. Até que é legal ver você me pedindo para bater em alguém, mas por que essa idéia?

- Quero só ver alguém que merece apanhar, levando uma surra. E você é boa nisso. – ela deu de ombros.

- Hmm. O branquinho fantasma é a razão da repentina sede de violência da Lem? – Lem não gostou muito do apelido que Lilly dera a Shiree, mas era melhor do que lembrar do nome dele a toda hora.

- Vamos só dizer que ele é a pessoa que eu vou imaginar quando você estiver batendo no Gilbert.

- Há. Porque tanta raiva no seu coraçãozinho? Ele não foi tão mal. Quer dizer, ele até te deu um presente de múltipla escolha lá na sala não é? E eu ganhei o meu punhal por causa dele também.

- E o que você queria fazer com aquele punhal? É algum tipo de fixação repentina por armas brancas? – Lem mudou o assunto para não falar o motivo real da raiva.

- Bom. Isso eu não quero falar. – Lem ficou curiosa. Porque Lilly estava fazendo mistério quanto ao interesse na adaga? Elas ficaram quietas por um tempinho. Já estava quase na hora do fim do intervalo. Lem decidiu voltar para a sala antes de acabar. Ela se levantou e bateu nas roupas para tirar o pó.

- Vem comigo. Quero te mostrar uma coisa.

Lem fez sinal para dentro da mansão. Lilly acompanhou. Elas atravessaram por baixo da fita que proibia a entrada no jardim morto e seguiram reto pelo corredor longo da casa até o pátio de entrada cheio de pessoas correndo, andando e conversando alto, e do pátio para o corredor da sala de aula. Não havia ninguém na sala agora, e elas foram direto às suas cadeiras. Lilly arrastou sua mesa um pouco na direção da de Lem, e virou-se para pegar a sua mochila. Ela pegou uns grampinhos e prendeu as mangas largas de sua camisa, deixando os braços para fora. Lem abriu a sua mochila e tirou o caderno que continha o mapa copiado dentro. Colocou-o sobre a mesa e guardou todo o resto debaixo da cadeira. Pegou o caderno e abriu, procurando as folhas. Então tirou um macinho de folhas e colocou ao lado do caderno. Os olhos de Lilly estavam curiosos quanto ao conteúdo daquelas folhas. Lem tirou o caderno da mesa, e alinhou as folhas uma ao lado da outra para que formassem a planta da casa.

- Olha só. Era o que eu ia mostrar. – Lem mostrou a planta montada para Lilly com certa excitação.

- Hmm. Propriedade de Ciere Winter? Quem é esse? Lem... Você roubou isso? – Lilly disse a última parte com certo orgulho na voz.

- Não. – Lem fez uma careta para Lilly e voltou a falar. - Isso estava na mesa do meu pai. Ontem não tinha ninguém em casa, por isso eu entrei no quarto dele e achei isso.

- Você foi mexer nas coisas do seu pai? Por quê? Pensei que você não ligava pra ele ou para o que ele faz.

- Isso mudou um pouco ontem... – Lem deu um suspiro e decidiu que era hora de contar para a amiga o que havia lhe acontecido. Lilly havia feito isso, afinal.

- No dia que ficamos de castigo lá na biblioteca e o Shiree apareceu lá, quando cheguei à minha casa, meu pai me pediu para ir com ele pra casa de um tal parceiro de negócios. Eu achei que fosse só pra tratar de coisas chatas, e eu acabei aceitando ir com ele. Só que nós fomos pra casa do Shiree.

- Coincidência, não? – Lilly se arrumou na cadeira para ouvir melhor.

- Não foi coincidência. Ele sabia que eu ia lá naquele dia, por isso veio aqui para falar comigo antes. – Lem estava começando a se irritar com a história. – Ele sabia de tudo, e ficou brincando comigo. Disse que eu era uma boneca pra ele, como se ele me controlasse. – Lem não quis dizer que ele havia conseguido.

- Então ele veio te ver aqui na escola só porque você ia lá mais tarde? Até que é simpático. – Lem definitivamente achava que não, e fez outra careta para Lilly quando ela disse isso.

- Teve outra coisa... – Lem fez uma pausa. Agora ela já estava pensando novamente no assunto, e no fato de que ainda não havia feito nada para resolver esse problema. – o assunto que o meu pai foi resolver com a família do Shiree era sobre mim. Eles querem me casar com o Shiree.

- ...Uau...

Lilly ficou sem reação, então decidiu simplesmente manter o silêncio quando percebeu que o assunto era mais sério. Ela tinha algumas perguntas, mas sabia que era melhor guardá-las para si no momento, então se contentou em apenas observar os desenhos. Estava na cara de Lem que ela estava irritada. Ela encostou o queixo sobre as folhas na mesa, e fechou os olhos, pensando se havia alguma coisa que poderia fazer. Qualquer coisa. Quando abriu seus grandes olhos verdes, fitou a planta da casa e percebeu algo.

- Lilly, olha aqui. – Lem apontou para a entrada da mansão desenhada. – Aqui é a entrada, e tem dois corredores que levam para cada lado da mansão. E nos corredores tem vários quartos... – enquanto falava, Lem apontava para o desenho. Só então, Lilly percebeu o que ela queria dizer.

- É a planta da nossa escola. – Lilly falou enquanto olhava fixamente para os papéis.

Lem se lembrou que Shiree mencionara que a escola era originalmente igual à casa dele, mas que fora reformada por algum motivo. As duas meninas começaram a examinar a planta, procurando os lugares que elas costumavam ir. Lem olhou de sala em sala, procurando uma em especial, mas não encontrou a galeria, onde conheceram Shiree. Lem sabia em qual corredor ela deveria estar, mas a sala não estava lá. No entanto, o cômodo que estava riscado à caneta parecia ser o quarto vazio dentro da galeria secreta, mas segundo o mapa a entrada ficava no corredor paralelo à ele. Sim, ela tinha certeza que aquele era o quarto iluminado por velas que Lem viu Shiree sussurrar aquelas coisas estranhas.

-Quando o anjo inocente conhecer a verdadeira face do demônio. Ele estava falando de mim naquele momento? Ele é o demônio em questão?-

Lem deduziu que a entrada estar em um lugar diferente devia ser por causa de uma das reformas que ocorreram na casa. Assim como Shiree mencionou. Mas agora ela já estava curiosa. Ela queria investigar o que havia naquela sala vazia. Havia um alçapão naquela sala, então esse alçapão devia levar pra algum lugar. Ela estava curiosa.

- Lilly, o intervalo vai acabar logo, certo? – Lem perguntou à garota ao seu lado sem virar o rosto.

- Faltam poucos minutos. Por quê?

- Você não deve estar com muita vontade de falar com o Gilbert ou o Duo ainda, então vamos cabular essas aulas? – Lem agora estava com um sorrisinho no rosto. Seu olhar estava cheio de empolgação quando olhou para Lilly.

- Sou uma má influência para você. – Lilly falou já se levantando. Ela gostou da idéia. – Para onde vamos?

- Lembra daquela sala em que ficamos presas? Onde conhecemos o Shiree? Ela tem uma entrada diferente nesse meu mapa. Vamos procurar a outra entrada. Se conseguirmos entrar lá, quero conferir uma coisa.

Lem guardava seus materiais enquanto falava. Jogou sua mochila nas costas, deixando apenas as folhas do mapa na mão. As duas saíram rápido da sala, antes que alguém as notasse. Elas pararam na quina do corredor, onde Lem ficou espiando o pátio de entrada. Ninguém estava olhando, mas ainda havia bagunça. Quando o pátio estava quase vazio, as duas passaram correndo e foram para fora da mansão. Elas ficariam esperando ali até todas as crianças estarem de volta às suas salas, e então vasculhariam a casa com mais tranqüilidade. Elas ficaram ali fora só mais alguns minutos, e quando o movimento cessou, elas entraram novamente na casa, pela porta do jardim morto dos fundos. Aparentemente, aquela porta não havia sido fechada desde o dia que Shiree a abriu. Lem foi à frente, ela sabia o caminho. Entraram pelo corredor das salas de aula, silenciosamente. As duas andaram na ponta dos pés quando passaram perto da sala dos professores. Antes das salas de aula, havia uma portinha que estava sempre fechada. Todos achavam que era o depósito de materiais, onde guardavam os equipamentos de educação física, ciências, química e afins. Mas na verdade ela era a premiada. Era uma das salas proibidas da escola. As duas meninas observaram com cuidado se ninguém estava por perto, então tentaram abrir a porta.

- Trancada. – Lem bufou.

- Me deixa tentar abrir.

Lilly tirou sua mochila das costas e jogou no chão. Então abriu e começou a procurar alguma coisa. Depois de um tempinho mexendo no que Lem deduziu estivesse uma bagunça, ela tirou um pequeno objeto de plástico com uma ponta de ferro. Era seu canivete de várias funções. Lilly colocou a ponta de ferro dentro da fechadura da porta e virou algumas vezes. Então parou, e voltou o rosto para Lem.

- Trancada. – Lilly bufou.

- ...

- Alguma idéia? Nós precisamos da chave.

- Hmm. Não dá pra roubar a chave na sala dos professores, sempre tem alguém lá. Nos pegariam facilmente. – Lem ponderou. – Mas tem outra pessoa que tem a chave.

- Quem?

- Shiree.

- O branquinho tem a chave daqui? Como você sabe?

- Não se lembra que ele abriu a porta da biblioteca que ficamos presos? Ele tem as chaves daqui.

- E como vai pegar dele?

- Vai ser fácil. Se querem que eu me case com ele, então pelo menos eu tenho um bom motivo para me aproximar. – Lem falou em tom de sarcasmo. Ela sabia que não faria isso.

- ... – Lilly ficou em silêncio por um tempo. Então pegou sua mochila do chão, guardou o canivete dentro e a jogou nas costas. – Vamos sair daqui. Alguém pode aparecer.

- Certo... – Lem pareceu desapontada.

As duas voltaram pelo mesmo caminho, ainda fazendo silêncio. Passaram pelo jardim morto e dele, para o pátio principal com a estátua. Ainda faltavam algumas horas até a hora de ir embora. Elas não podiam mais voltar para a sala de aula, então elas decidiram ir embora e fazer algum passatempo até a hora de ir pra casa. Lilly acompanhou Lem até a beira da montanha, no campo das flores, onde decidiu esperar por Duo. Ela queria conversar, e quem sabe, até pedir desculpas por ter perdido a paciência com ele. No fim das contas, não foi ele quem fez a coisa errada. Quanto à Gilbert, Lilly decidiu que queria fazer ele pagar. De algum jeito. As duas chegaram à colina, e sentaram-se na beira. Lem estava quieta agora. Lilly achou melhor ficar um pouco quieta também, afinal, ela não era do tipo que ficava falando que tudo daria certo só para animar alguém. Lilly esperou que Lem dissesse algo, mas ela não falou nada.

- Nós vamos tentar dar um jeito nisso, menina. Cada pessoa tem que ser a dona da própria vida. – Lilly manteve o olhar nas flores. Ela não tinha jeito nenhum pra fazer esse tipo de coisa, mas Lem precisava que alguém a animasse agora. Pensou na ironia da situação. Lem apoiou a cabeça no ombro da amiga.

Ambas ficaram esperando até a hora da saída dos alunos, mas Duo não fez o caminho de sempre naquele dia. Elas deduziram que ele fora embora na hora do intervalo também, então deixaram para falar com ele no próximo dia. Lem chegou um pouco mais tarde em casa, e foi direto pra cama. Ela estava cansada. Parecia que cada dia estava ficando mais difícil de suportar. Ela se sentia na urgência de fazer alguma coisa, mas não lhe vinha nada na cabeça, então pegou o livro para distrair um pouco a mente. “Às vezes, boas idéias surgem em uma mente calma” ela havia lido essa frase certa vez na casa da avó. Ela se deitou sem trocar de roupa, e abriu o livro no travesseiro à sua frente. Lem dormiu enquanto lia o livro que começara na noite anterior. 

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