Capítulos (1 de 2) 20 Nov, 2019
02 - Irmão.
“Passagens bíblicas?” Ele havia parado de andar, mesmo que ainda segurasse em seus braços aquela caixa de som. “Algum motivo especial para perguntar?”
“Bem, eu apenas fiquei curiosa.” Eu disse.
Era possível ver em seus olhos que a minha resposta não tinha sido suficiente.
Mas mesmo assim ele preferiu não me questionar.
“ ‘E o pó volte à terra, como era, e o espírito volte a Deus, que o deu.’ Eclesiastes 12:7 ’’
“Existe mais alguma?”
“ ‘Assim como a nuvem se esvai e desaparece, assim quem desce à sepultura não mais volta.’ Jó 7:9” Ainda complementou. “ ‘Aos homens está destinado morrer uma vez só, vindo, depois disso, o juízo.’ Hebreus 9:27”
Quando colocado dessa forma.
É fácil entender.
Pela visão bíblica.
“Então. É isso, não é?” Sussurrei.
Não existem.
“Eu não sou nenhum especialista, mas eu acho que não deveria insistir nesse assunto.”
“Mas... O que eu deveria pensar sobre todos os relatos que existem pelo mundo?”
“As pessoas se enganam, imaginam coisas, algumas possuem distúrbios. Por fim, ainda existe aquelas que mentem.” Disse Rafael.
Chega a ser.
Diabólico.
O quanto ele poderia estar certo.
Era exatamente como eu me sentia naquele momento, mas mesmo assim, minha mente divagava buscando uma resposta, tentando fazer da silhueta uma sombra, um mal entendido. Mesmo que eu soubesse, não consigo me desligar deste sentimento.
Esse que continua me pressionando.
O de olhar para.
Uma verdadeira mentira.
“Eu nunca achei que você iria me perguntar sobre passagens bíblicas.” Rafael voltava se manifestar, dessa vez já um pouco mais ausente, ele não iria mais continuar aquele assunto. “Eu sempre achei que você só tinha interesse por coisas muito específicas. Será que finalmente está encontrando em seu coração a vontade de se converter?”
Eu preferi o silêncio.
E então, mudei o assunto.
“Por que exatamente você precisa da minha ajuda mesmo?”
A única coisa que estive fazendo naquela tarde era olhar para Rafael desmontando os equipamentos de som que eu mesma vi ele montar no primeiro dia de aula.
Sequer eu toquei em alguma coisa.
Apenas estiva lá.
“Porque gosto de conversar com você.”
“Não se encontra alguém como eu tão fácil, não é?”
Dessa vez foi ele quem preferiu o silêncio.
Rafael da Silva Lima.
Ele e eu somos colegas de classe, é o exemplo mais próximo de religiosidade que eu possuo atualmente, mas eu ainda não consigo considera-lo um completo fiel, as vezes ele usa sua crença de uma forma seletiva, filtrando os ensinamentos da religião para que fiquem convenientes – não acho que ele seja o único que faça isso –, ignorando-a quando necessário, mas, eu prefiro não me envolver muito com a forma que escolhe lidar com sua fé, eu também evito perguntar sobre sua família, apenas sei que eles não são do Rio de Janeiro, diferente de mim, Rafael não é carioca.
É injusto não dizer.
Rafael é responsável.
É seu traço mais marcante.
Embora nem sempre tenha sido assim.
Os anos mudaram sua vida de várias formas diferentes, é possível sentir. Uma mudança drástica que aconteceu durante a transição do ensino fundamental para o ensino médio, eu nunca perguntei diretamente, mas eu consigo reconhecer que algo grande aconteceu nesse período, mas, para Rafael, isso veio como algo positivo que influenciou para ele ser a figura que conheço hoje.
Rafael no passado era um garoto problemático, as crianças a sua volta sentiam medo dele, afinal, ele sempre foi um garoto agitado até mesmo hoje ainda existe um pouco disso em sua personalidade, mas naquele tempo era diferente, por causa disso ele sempre acabava se enfiando em todo tipo de situação.
Se alguém estivesse com meleca nas costas.
Se alguém estivesse começando uma briga.
Se alguém estivesse chorando.
Se algo estivesse quebrado.
Se algo apenas sumisse.
Pode ter certeza que as chances de Rafael estar envolvido eram altas.
Altas o suficiente para ser um garoto problemático.
Altas o suficiente para ser temido.
Ignorado.
Eu as vezes não consigo reconhecer o passado quando estou na presença dele, é como se quem eu conheci antes, agora já não fosse nada além de uma história mal contada. Rafael e eu estamos na mesma classe desde a quinta série, mas nós nunca fomos próximos no ensino fundamental, mas nesses últimos dois anos nós tornamos algo parecido com amigos.
“A propósito, tem algo que vem me feito pensar esse tempo inteiro.”
“O quê?”
“Por que você usou ‘Curiosa’ na hora de falar de si mesmo?”
“Huh?!”
É verdade.
Eu não deveria.
“Nada em particular, eu apenas disse acidentalmente.” Isso foi estranho.
Como eu cometi esse erro bobo?
Eu sou um garoto.
“Ufa!” Ele disse aliviado. “Acabamos... É cansativo ficar até depois da aula.”
Ele havia terminado de guardar todos os equipamentos, principalmente os cabos e mesa de som.
“Eu não entendo para que ter todo o trabalho de montar, se logo depois precisa desmontar em menos de uma semana de uso.”
“Veja pelo lado bom, hoje já é sexta-feira. E você? Tem algum plano para o fim de semana?”
Sim, sexta-feira.
O último dia da semana.
A primeira semana de aula havia terminado para nós dois oficialmente naquela tarde, éramos alunos que estudavam durante as manhãs, mas mesmo assim nós tivemos de ficar pelo menos duas horas depois das aulas para poder fazer o serviço de recolher os equipamentos de som que estavam montados no palco da quadra da escola, quando eu digo nós tivemos, eu me refiro apenas ao Rafael.
Eu apenas o observo fazer o serviço.
A escola informalmente o fez responsável por isso.
O nosso colégio é reconhecido como a melhor escola pública da região, devido a oportunidade que ela abre para os alunos, já que uma empresa privada pessoalmente usa o colégio como os portões para novos interessados, através de uma prova, escolhendo os melhores alunos para que possam começar um estágio remunerado e receberem patrocínio para que seus estudos – que são separados dos demais alunos – possam ter uma melhor qualidade, tudo para que quando se formarem já possam ingressar na empresa como funcionários ideais da área de metrologia.
Os pais da região não medem esforços para ter seus filhos estudando nessa escola.
Sempre existiu uma grande demanda.
Porém.
Nossa escola não era tão espaçosa, tudo que tínhamos era um único prédio para todos os alunos, o pátio não tinha nem mesmo metade do tamanho que ele tem hoje. Por causa da falta de espaço, não era possível ter sala de multimídia ou para os professores. Todo o espaço que sobrava era dedicado para uma sala de aula, sendo a única forma de conseguir comportar a grande quantidade de alunos todos os anos.
Não tínhamos nem quadra.
As aulas de educação física precisavam ser feitas em um campo de futebol público que existe a poucos quarteirões de distância.
A pouco menos de dois anos atrás a nossa escola finalmente conseguiu concluir uma reforma, algo que só aconteceu pouco depois da antiga diretora ter sido substituída por ter sido descoberto que ela era responsável por desviar o dinheiro do colégio para fins pessoais, fazendo com que a obra sempre estivesse atrasada. Quando o novo diretor assumiu, as coisas começaram a andar novamente, e a prometida obra, resolveu os problemas, como era esperando.
Agora o colégio tinha dois prédios, uma quadra, sala de multimídia, biblioteca e tudo de mais básico que um colégio precisaria ter.
Mas, por causa disso.
Foi quando que, no lugar de um profissional, Rafael foi colocado como responsável por fazer tudo que fosse relacionado a equipamentos eletrônicos e rede. Para mim foi uma surpresa descobrir que ele secretamente sempre se interessou por informática e eletrônica, de uma hora para outra, eu comecei a enxergar ele como um técnico.
Tem sido assim nós últimos dois anos.
No primeiro ano, nós tornando próximos, mas por uma questão de familiaridade, porque eu e ele fomos transferidos para o turno da manhã, nossos antigos colegas que acompanhávamos desde a quinta série não mais estariam lá conosco, eram pessoas novas que iríamos passar a conviver e com a maioria dali compartilhar a mesma sala pelos próximos anos, por causa desse motivo, começamos a conversar, para ele era mais confortável no início, falar com alguém que reconhecia, foi quando acabei me juntando a ele quando precisava fazer algum serviço para o colégio.
Ele nunca precisou da minha ajuda de verdade.
Apenas queria uma companhia.
Eu acabei me acostumando.
O nosso primeiro dia de aula é um exemplo disso, eu cheguei bem cedo na escola, por volta de cinco e meia da manhã porque Rafael havia me pedido para ajuda-lo. A escola havia requisitado que naquele dia, antes do horário de entrada, fosse montado o equipamento de som junto com microfones no palco que existe na quadra, para uma cerimônia de volta as aulas que acontece todos os anos, e também, todos os anos o colégio tenta trazer velhos costumes, como o de tentar reunir todos os dias, antes das aulas, os alunos para cantarem juntos o hino nacional.
Patriotismo.
Como esperado.
Não durou muito.
Em menos de três dias essa ideia foi descartada, o que era para reviver os tempos patrióticos, falharam mais um ano.
Sempre foi algo óbvio.
Porque.
Você conseguiria cantar o hino nacional completo se eu lhe pedisse agora?
Até pouco tempo antes de completar 10 anos de idade, eu acreditava que o hino nacional – que sempre vem escrito no verso dos livros educativos do estado – era dividido em duas partes, porque sempre que eu o ouvia era tocado apenas metade.
Se você sabe o hino completo.
Eu acho que te devo parabéns.
Mas.
E o hino da bandeira?
Eu acredito que a maioria de vocês não sabe nem mesmo como ele começa.
Somos brasileiros mas não somos patriotas, éramos no passado, mas agora não somos mais.
Coisas que deveriam ser de conhecimento comum, com os anos deixaram de ser o que um dia já foram, os hinos do nosso país não são mais reconhecidos, não os aprendemos, é como se não fossem mais necessários para nossa identidade. O certo seria dizer: “Se tornou apenas uma música que ouvimos na Copa do Mundo de Futebol.”
Talvez o exercito brasileiro ainda tenha esse comprometimento patriótico, ou até mesmo escolas militares ainda sigam essas tradições, mas, em sua grande maioria? Se tornou normal as pessoas não conhecerem os hinos e atípico elas saberem – eu me sentira surpreso vendo alguém canta-los –. Não estarmos habituado com o próprio hino, foi suficiente para que em poucos dias a escola deixasse de obrigar todo mundo a se reunir antes das aulas.
O que nós trás de volta ao presente momento.
“Eu acho que vou jogar RPG de Mesa. Eu descobri recentemente que pessoas se reúnem online para jogar. É bem divertido, poder interpretar vários tipos de personagens ou contar as histórias para os jogadores.” Eu estava um pouco animado.
Mais do que deveria talvez.
Porém sou assim.
Quando gosto.
De algo.
“Vai ser mais uma coisa que você abandona? Você costuma abandonar as coisas rápido.”
Silêncio.
Aquilo me machucava um pouco.
Mas eu logo sentia como se nada tivesse acontecido.
Como eu havia dito antes, eu não tenho amigos, o que Rafael e eu temos é apenas uma relação de convivência, eu diria até mesmo que somos dependentes um pouco do outro, não possuo mais ninguém para conversar na escola, quanto a ele, possui amigos, não precisa de mim para conversar, mas eu sou o único disposto a vir o fazer companhia em seus serviços.
Uma troca.
É o que fazemos.
Nós nunca fomos amigos de verdade.
Nunca seremos.
Mesmo que ele possa afirmar que me considera um amigo, ele não sabe nada sobre mim, em todos esses anos nunca combinamos de sair juntos, fomos até a casa um do outro ou fomos embora para casa juntos. Para mim estava tudo bem dessa forma.
“Bom, eu vou indo na frente então, Rafael. Você ainda vai ficar mais um pouco, não é?”
“Sim, eu vou conversar com o diretor. Daqui a pouco o Ronaldo vai estar indo embora também, então eu irei com ele.”
É assim que somos.
É assim que tem de ser.
É apenas o último ano do ensino médio.
Eu o vi apenas desaparecer para dentro da porta da diretoria, não havia mais nada que eu precisasse fazer na escola, apenas me restava voltar para casa.
Foi quando.
Eu estava saindo pelo portão da escola.
“Ao irmão dizem tudo.”
Ouvir aquela frase.
Me fazia sentir um calafrio subindo pela minha espinha.
Eu já estava acostumado a sempre voltar para casa sozinho, por causa disso eu acabava não prestando muita atenção no que acontecia a minha volta, o que as pessoas diziam era parecido com o vento, eu sequer escutava, até mesmo quando alguém gritava meu nome eu sequer precisava virar o rosto, porque sabia que não era eu sendo chamado.
Mas mesmo assim, aquela frase.
Eu não poderia ignorar.
Quem havia dito aquela frase estava logo atrás de mim, sua voz fazia com que sentisse uma familiaridade em seu tom, eu havia escutado antes, porém, não conseguia me lembrar de quem ela pertencia, então inevitavelmente eu me virei.
Flash.
Estava cego.
Uma forte luz fazia com que eu fechasse meus olhos e por reflexo tentasse proteger meu rosto com as mãos.
“Hooo. Ficou uma foto mais legal do que eu esperava.” Disse ela.
A dona daquela voz.
Aos poucos eu comecei a me recuperar do flash da câmera de seu celular, olhando diretamente para ela eu conseguia agora dizer de onde eu a conhecia.
Sabrina.
Nós nunca conversamos.
Eu não lembro seu sobrenome, na verdade, já fazem quatro dias que eu apenas ouço seu primeiro nome.
Sim.
Eu o escuto todos os dias.
Repetidas vezes no mesmo dia.
Sempre que os professores fazem a chamada, eu o escuto, Sabrina, uma das minhas colegas de sala – uma das últimas da chamada –, porém essa é a primeira vez que estamos estudando na mesma sala, embora eu nunca a tenha visto na escola nos anos anteriores, então apenas me conformei com a ideia de que era o seu primeiro ano frequentando aquele colégio.
“F-foto?”
“Sim, olha sua expressão! Da para fazer um quadro dela.”
Desde o primeiro dia eu já havia notado que Sabrina é bem apegada ao seu celular, em nenhum momento que corriqueiramente acabei olhando para ela durante as aulas eu a vi sem estar mexendo nele ou olhando para a sua tela.
“P-por que diabos está tirando fotos minhas?”
“Huh?! Porque você é atraente. Por que mais eu tiraria fotos suas?”
Por detrás de seus óculos é fácil reconhecer os olhos de uma garota honesta, por causa de seus trejeitos eu consigo dizer que Sabrina é alguém determinada e comunicativa, ela também possui uma aura um pouco madura e bem resolvida, não consigo olhar para ela e não reconhecer que alguém bem confiante, caso contrário, ela não me diria aquilo tão descaradamente.
Não tinha como ser menos que embaraçoso.
Chegava a ser um pouco irritante, porque em seus olhos estava claro que não era deboche.
“Certo...”
“Não seja tão cabeça dura, você tem uma boa aparência. Seja mais confiante!”
Eu mais uma vez preferi o silêncio.
“Eu me chamo Sabrina. Deveria ser mais gentil comigo, poxa... Eu sou nova aqui.”
“D-desculpe... Eu me chamo...”
Eu fui interrompido.
“Eu sei como você se chama, estamos na mesma classe. Escuto todos os dias, o primeiro nome da chamada é o seu.”
Existiam coisas que eu gostaria de perguntar para Sabrina, mas sua personalidade me fazia sentir desconfortável, ela era bastante invasiva, aproximava-se de mim com seu celular tirando vários tipos de foto, de cima abaixo eu fui fotografado, eu não me sentia seguro, seu sorriso descompromissado me desencorajava a estar ali enquanto o silêncio que crescia entre nós transformava a situação em um inferno intolerável.
“Sabrina, não é?” Eu logo cheguei ao limite. “Eu vou indo... “
“Vai? Eu tive todo o trabalho de ficar esperando você durante tantas horas.”
Eu apenas suspirava, parando de andar, algo em mim dizia que ela era o tipo de garota irritante, pior que isso, o tipo que se torna difícil de lidar se não a der atenção.
“Esperando por mim? Por quê? Obrigado por me chamar de atraente... Mas, eu prefiro não ter uma stalker.”
“Hooo... Interessante.”
Naquele momento eu apenas conseguia ver seus olhos se tornarem mais afiados, algo havia chamado sua atenção, o que fazia com que as fotos involuntárias terminassem, dessa vez, ela começava a me analisar de uma maneira mais crítica com seus próprios olhos.
“O-o que foi dessa vez?”
Eu cambaleava um pouco para trás a medida que ela se aproximava de mim, eu conseguia sentir sua respiração acertando meu rosto devido a sua proximidade, aquilo era invasivo de tantas formas diferentes que ao invés de me sentir envergonhado por ter uma garota tão próxima de mim, eu me senti incomodado.
Eu coloquei minhas mãos em seus ombros, afastando-a de mim.
Não houve resistência.
“Gara! Gag! Gah!”
A risada dela era tão obscena quanto você está imaginando agora.
Ela estava fazendo de propósito, por sinal.
Então, ela continuou a falar.
“Entendo. ‘Ao irmão dizem tudo.’ “ Ela repetiu aquela frase, dessa vez eu já estava preparado para ouvi-la mais uma vez, não era tão impactante quanto da primeira. “Então a sua reação de antes foi real... Interessante, interessante. Então... você também viu, não é?”
Enquanto ainda segurava em seus ombros, minhas mãos perdiam levemente a força com a sua pergunta, algo que fazia seu sorriso aumentar quase deixando saltar para fora uma gargalhada de excitação. Um nó começava a crescer em meu peito.
Aquela pergunta havia sido retórica, ela sabia a minha resposta, mas mesmo assim me senti obrigado a responde-la.
Também era algo que ela esperava.
Ouvir aquilo de mim.
Minhas palavras.
“Sim.” Eu disse.
Eu vi.
Uma mentira.
Mas que também.
Era real o suficiente para ser uma verdade.
Naquela sexta-feira, dia 6 de fevereiro de 2015.
No último dia de aula da semana da primeira semana de aula do ano.
No meio da sala de aula da classe 3006.
Eu ouvi algo.
Logo quando me virei.
Eu vi.
Um fantasma.