Capítulos (2 de 23) 02 May, 2020
Blue: 001
— Há quanto tempo, seu pamonha.
Antes mesmo de sua voz jovem e suave chegar aos meus ouvidos, eu já havia voltado minha atenção para a garota que se aproximou da mesa no café onde marcamos de nos encontrar.
Eu a olhei de baixo para cima. Desde os tênis brancos, seguindo por suas pernas lisas, coxas fortes, o short jeans curto, o abdômen perfeito e uma regata cropped branca com alças finas. Mais acima, um rostinho angelical, dono de um par de olhos azul-escuros que só eram mais claros que os cabelos negros da garota. Na cabeça, seu famigerado gorro cinza.
Ela gostava de usar luvas sem necessidade, mas desta vez suas mãos estavam nuas. Elas estavam enfiadas nos bolsos traseiros do short, enquanto a híbrida dirigia o olhar para mim.
— E aí... Yuna.
À minha saudação, a garota baixou os ombros. Suas mãos saíram dos bolsos e foram para sua cintura. Sua expressão era de decepção.
— Estou decepcionada. — Viu? Acertei. — Você é o pior pedófilo que já pisou neste país.
Ela não baixou o volume ao fazer seu comentário perigoso. Automaticamente, todos na cafeteria me olharam discretamente, provavelmente esperando alguma reação que confirmasse as palavras de Yuna. E claro, Vosso Humilde Narrador não é esse tipo de cara. Mesmo que Yuna fosse irritantemente atrativa, ela só tinha dezesseis anos na época. Era complicado andar com a garota em público sem ser julgado por terceiros, principalmente se encontrar com ela quase dez horas da noite.
— E-Eu não sou pedófilo e só tenho dezoito anos...
— Hmm, mentindo a idade, seu pamonha.
— Quê?! Eu não estou mentindo. Olha minha cara de novinho...
— Aposto que usa sua aparência jovial para enganar as garotas mais novas, não é?
— Não! Eu sou um santo!
— Sei, sei. — Da cintura, suas mãos foram para mesa. Ela inclinou para frente, cobrindo quase todo meu campo de visão. Naquela pose, daquele ângulo, era difícil ignorar... — O único par que precisa olhar enquanto falo com você, está no meu rosto, e são azuis.
Engoli em seco, mas cravei meu olhar em seu par de safiras a centímetros de mim. Mesmo com o brilho travesso no olhar de uma adolescente se divertindo com meus desejos mais obscuros, aqueles olhos eram incrivelmente sedutores. Era o jeito mais fácil, e mais seguro, de se descobrir que Yuna Nate não era humana.
— Hmph. — Ela reclinou seu tronco, dando fim a seu castigo contra mim, e se sentou no outro lado da mesa. Ela esticou os braços sobre o banco e cruzou as pernas. A expressão de satisfação em seu rosto era inegável.
— Eu te odeio — murmurei.
— Bem, agora que já te torturei, seu taradinho, pode me dizer o que tem para me dizer.
Ignorando todos os olhares que me julgavam silenciosamente, eu me ajeitei no banco estofado, coloquei meus cotovelos na mesa, e me tornando o mais profissional possível, comecei.
— Nós encontramos o youkai que salvou sua mãe no cruzamento naquela noite.
Como se em resposta a informação súbita que a hanyou teve de digerir à seco, a feição da garota se tornou séria, se transformando da água para o vinho.
Na missão em que conheci Yuna, eu também conheci sua mãe. Minha missão não tinha a ver com as duas, o meu objetivo era só o Oni. Contudo, as coisas que aconteceram, aconteceram. Quando reparei, eu já estava envolvido naquele caso de família.
Durante minha missão, Yuki-onna acabou salvando o Oni da jaula da Mythpool e nos forçou a persegui-los pelas ruas de Tóquio, até que Yuna apareceu para resolver seus assuntos com a mãe. O que se sucedeu foi que a Mulher da Neve e seu parceiro foram cercados pela Mythpool e pela atual Assassina de Youkais. Sem saída além de lutarem, subitamente, um homem surgiu em um teletransporte e em um piscar de olhos sumiu com a dupla.
Yuna não sabia quem era. Eu não sabia quem era. Ninguém sabia quem era.
Com o passar do tempo, após eu retornar de minha suspenção e ser promovido, junto de minha parceira Suny, começamos a investigar bem fundo, até que, na noite anterior àquele encontro com a hanyou...
— Mythpool! Mãos na cabeça!
O som do meu clamor saiu logo depois do barulho da porta sendo arrombada por Suny McSun, antes conhecida só como agente 2k9. Eu já meio que tive uma “amizade sincera” com ela quando estava em treinamento. Coisa boba. Embora ela fosse muito bonita com seus traços orientais, cabelos curtos e escuros, assim como seus olhos em sua pele clara, nós não iriamos dar certo. Na minha cabeça era isso.
Mas minha relação com ela não é importante.
Profissionalmente falando, claro.
Como detentora da lendária espada Totsuka, eu esperava que Suny apavorasse o youkai ao invadir seu suposto apartamento alugado ilegalmente. Porém, o sobrenatural permaneceu tranquilo e infalível como Bruce Lee.
Um homem de cabelos brancos e espetados como as costas de um porco-espinho. Os olhos vermelhos como se pregassem um par de rubis em seu rosto. Naquele momento, ele estava sem camisa, usando um avental de cozinheiro e um samba-canção vermelho e preto. Diante dele, um balcão, onde estava cortando frutas e legumes com maestria.
E ele não parou de cortar. Mesmo depois de nossa entrada dramática.
Para ser sincero, mal voltou sua atenção para nós.
— Ei! Mythpool! Não ouviu?
— Sim, eu ouvi — respondeu ele, concentrado em cortar seus legumes. — Vocês fizeram bastante barulho. Sabem que essa porta não é minha, não sabem?
— Eu gostaria — começou Suny —, que parasse de cozinhar e notasse que a lâmina que está apontada para você pode apagá-lo da existência.
— Hmph, meio exagerado — comentou o youkai, ainda cortando legumes. — De fato, a lâmina Totsuka tem um efeito mágico absurdo, agindo quase como um veneno para a alma, é verdade. Mas, vamos ser transparentes aqui. Eu estava esperando por vocês. Eu conheço vocês. Suny McSun e ????. Se seguiram as pistas corretamente, devem ter ideia de quem sou eu. E, o mais importante, é que devem saber que não vão conseguir me tocar.
— Então, é você mesmo, Tengu?
A faca parou de se mover. Os legumes enfim receberam um pingo de benevolência.
— Eu... não gosto do som dessa palavra — o youkai ergueu a faca em sua mão, a apontando para Suny, mas de forma inofensiva. — Bem, não importa. — Ele cravou a faca no balcão e saiu detrás dele. — Não é como se eu deixasse de ser algo, simplesmente por meus pensamentos.
— Olha, eu não sei o que quer dizer — falei —, mas se chegar muito próximo, vou espalhar sua massa cinzenta para todos os lados com uma dessas balas de adamantina aqui!
— Hmph, meio exagerado.
— Ok, você não parece ser hostil — minha parceira baixou sua espada.
— Tá doidona, é? — Reclamei.
— Ele deixou sua única arma no balcão. Vou tomar a mesma iniciativa e baixar minha espada. Ah, e abaixe sua pistolinha aí. Isso foi meio que uma ordem, então...
— Quê? Mas... — não quis começar um debate, baixei minha arma.
Com todos em um suposto acordo de paz, Suny deu um passo adiante.
— Eu pretendo não perder muito tempo, portanto, irei interrogá-lo aqui mesmo.
— Sinta-se à vontade. Só não exagere.
— Tudo bem. Primeiramente, era realmente você quem salvou Yuki-onna e o Oni da Mythpool nas férias de inverno?
— Sim, eu mesmo. Mas esperava que fosse...
— Por quê?
— Hmm... profissionalismo. Não, não é essa a palavra. O que quero dizer é que colegas de trabalho ajudam uns aos outros.
— Qual tipo de trabalho?
— É complicado responder. Temos cargos diferentes. Yuki-onna era só uma funcionária prestativa. O Oni está mais para um sócio.
— Se ele é um sócio, posso dizer que você não faz parte da Yakuza.
— Puff, é claro que não. Envolvimento com os humanos? É uma futilidade. Humanos são complexos... eu os admiro bastante... porém, sei separar o joio do trigo. Youkais e humanos vivem em mundos diferentes, se é que me entende.
— Sei... mas, se não está com a Yakuza, para quem você trabalha?
— Trabalho para mim mesmo, mas não sou meu chefe.
— E quem é seu chefe?
— Uma mulher... bem mais bonita do que você.
— Imagino que seja o motivo dos calos em sua mão. — Suny nunca foi de dar a outra face. — Eu só trabalho com nomes.
— Ela não tem um nome. Youkais não tem nome. São vocês que nos dão essas alcunhas. Talvez se reformular a pergunta...
— Com quem você trabalha? — Indaguei.
Os olhos vermelhos do homem se voltaram para mim. Ele sorriu com o canto da boca.
— Trabalho com alguns youkais.
— Quantos? — Acabei tomando as rédeas do interrogatório.
— Já fomos seis. Também já fomos oito.
— Quantos atualmente?
— Hmm, hoje, somos só três. Começamos a prezar por qualidade do que quantidade.
— E... o que vocês querem? Qual o objetivo de vocês?
— Bem, eu esperei mesmo vocês aqui para contar nosso plano maligno. — Ele foi claramente sarcástico. Recostou a cintura no balcão e pousou suas mãos sobre a madeira. — Se bem que, vocês me trouxeram o meu objetivo.
Ligeiramente, a mão de minha parceira que segurava a espada Totsuka, pressionou com mais firmeza o punho da lâmina lendária. E, se Vosso Humilde Narrador percebeu isso, o Tengu...
— Quem diria, hein?
De súbito, talvez mais veloz do que a luz, o youkai surgiu às costas de Suny em um teletransporte. Delicadamente, sua mão tocou o ombro de minha parceira. No instante seguinte, ela reagiu girando o corpo e movendo seu braço com a katana. Ao mesmo tempo, em uma das reações mais rápidas de que me lembro, eu movi minha pistola de adamantina, colocando o homem dentro da mira. O gatilho foi puxado precisamente ao final de meu movimento. Mesmo para alguém que pode saltar no espaço-tempo, um disparo naquela distância... foi completamente inofensivo.
O que se sucedeu foi mágico. Algo bastante comum quando se trata de criaturas sobrenaturais. Basicamente, a faca que estava cravada no balcão, simplesmente apareceu no meio do ar, entre meu projétil e o Tengu. Considerando o material dos objetos em questão, meu tiro iria atravessar a lâmina da faca e alvejar o youkai da mesma maneira. Mas, o que eu estava considerando é que aquela faca era um utensilio de cozinha comum, no máximo feito de aço. E esse julgamento prévio não me deixou preparado quando minha bala bateu e ficou na lâmina da faca.
Do outro lado dessa disputa entre projétil e lâmina, minha parceira não conseguiu ferir o Tengu com sua espada sagrada. O youkai, com seus reflexos sobre-humanos, deu um rápido passo para trás, fazendo a lâmina de Suny só deixar um corte em seu avental e no vácuo.
Ela se preparou para o segundo golpe. Eu me preparei para o segundo tiro. Contudo, o Tengu se teletransportou de volta para sua posição anterior. Recostado no balcão, com as mãos pousadas sobre a madeira, o youkai sorriu para nós.
Foi tudo muito rápido. Absurdamente rápido.
— Quem diria — começou ele —, que o receptáculo da joia Magatama seria alguém com a pele tão macia. Talvez você seja o motivo dos calos em minha mão.
— Tsc — minha parceira tomou uma posição de combate com sua katana e estreitou os olhos para o youkai. — Se o que querem é a joia, não perca a oportunidade.
— Hmph, meio exagerado. Se estivéssemos atrás da Magatama já teríamos arrancado dessa sua barriga branquinha. A verdade é que já desistimos da Magatama. Para nós, ela não é útil.
— Então — comecei —, seja lá qual for, é um ideal coletivo?
— É, digamos que...
O som do forno interrompeu o youkai. O jantar estava pronto. Ele olhou por cima do ombro, não se importando nem um pouco com sua guarda baixa. Repentinamente, Tengu apareceu diante do forno. Ele o abriu, e com a mão nua apanhou o que estava sendo preparado. Ao retirar, a imagem foi registrada em nossas mentes.
A cabeça cozida da verdadeira dona daquele apartamento, estava pendurada nos dedos do youkai. Não sei Suny, mas meu estomago balançou quando ele ergueu o crânio malpassado como um garçom ergue sua bandeja.
— Servidos? — Ele sorriu, inacreditavelmente convidativo.
Àquela atitude, Suny cerrou os dentes em fúria. Mal tive tempo de pronunciar algo para tentar impedi-la. Minha parceira se lançou contra o youkai, saltando por cima do balcão com sua agilidade surreal. A lâmina lendária já começava a dividir as partículas de oxigênio, dando início a um golpe que certamente decapitaria o Tengu. Porém, como já era de se esperar...
— Ele fugiu — falou Yuna. — Saiu de fininho.
— Exatamente.
Ao ouvir os fatos, a Assassina de Youkais reclinou a cabeça, apontando seus olhos cor de safira para o teto da cafeteria. Ela pareceu se perder em devaneios. E se eu estivesse com uma câmera naquele momento, poderia ter gravado um vídeo para fazer uma compilação no futuro, chamada: O Que se Passa na Cabeça de Yuna Nate.
— Meio milhão de ienes.
— Como?
A hanyou deixou de olhar para o teto e voltou a atenção para minha pessoa.
— Foi o que ouviu, seu pamonha. Meio milhão de ienes e ajudo você nessa.
— Espera, você vai cobrar?!
— Hã, mas é claro. Eu não esfrego a cara de alguém no asfalto de graça. A menos que eu esteja em missão, que também são remuneradas.
— Mas eu não pedi para você matar ninguém.
— Foi muito bom revê-lo, seu pamonha. — Yuna se levantou e colocou as mãos nos bolsos. — Boa sorte com a cura para o câncer e o com os mísseis em cuba...
— Espera, espera, espera! Vamos negociar.
— Não temos o que negociar, pedófilo. Se não precisa que eu mate ninguém, não precisa de mim.
— Mas eu preciso de você. Suny e eu não conseguimos dar conta de um único youkai, imagine três.
— Seu pamonha, está me deixando confusa. Você quer ou não quer que eu mate alguém?
— Você não precisa matá-los. Nós vamos prendê-los.
— Não é questão de necessidade, é questão de querer. E só prendê-los não adianta. Não lembra o que minha mãe fez?
— Sim, verdade... mas... ei, se você quer matá-los, por que está cobrando por isso?
— Simples. Eu vou matá-los de qualquer forma, cedo ou tarde. Se alguém estiver precisando que eu adiante meu serviço, preciso ser remunerada com juros. E não é como se eu fosse uma genocida... quero dizer, é sim, mas... é complicado. — Ela sentou de volta no banco estofado.
— Escuta, Yuna, matá-los é somente em último caso. Se for realmente necessário. Até porque a missão é descobrir o que eles querem e impedi-los de conseguir.
— E você já tem algo em mente? Tem alguma ideia do que eles possam estar procurando?
— Bem, eu tenho uma teoria.
— Desembucha.
— Eu acho que eles querem o escudo Kagami.
— O Kagami...?
— Isso, isso. Considerando o que o Tengu disse sobre a joia Magatama, é bem provável que eles estejam atrás de outro dos Três Tesouros Imperiais. Ou seja, o escudo Kagami.
— E por que não a lâmina Kusanagi?
— Bem... segundo os arquivos da Mythpool, a verdadeira Kusanagi foi roubada por um semideus que desapareceu. Claramente, não é algo que foi exposto ao público. A réplica da Kusanagi ainda está no palácio. Mas a verdade é que a espada está desaparecida e é bem provável que eles saibam disso. Principalmente se considerarmos que o youkai tinha uma faca de adamantina. Não se consegue isso em qualquer loja de conveniência, então ele deve ter contatos no submundo.
— Sei... faz sentido. Mas, por que eles querem o escudo?
— Talvez seja uma fonte de magia como a joia Magatama.
— Hmm, não sei. Me parece muito pouco. Lembro que estudei sobre os tesouros na AAA, só que não está claro para mim. De qualquer forma, não é minha missão. E se não for pagar os setecentos mil...
— Quê?! Aumentou?!
— Claro, seu pamonha. Agora o escudo Kagami está envolvido, então precisei subir o preço.
— Sua mercenária.
— Que isso, são seus olhos — ela sorriu.
— Tsc... já vi que não vai ter jei... — meu celular começou a tocar. Eu o puxei do bolso. Era Suny.
— 3k1, está me ouvindo?
— É, sim... o que houve?
— Você não disse que iria encontrar aquela garota?
— Mas eu estou com ela aqui, na minha frente...
— Não minta, ????! A hanyou está tocando o terror em um campo de golfe!
— Campo de golfe?
— Sim, o próximo da ponte!
— Mas como...? Ok, já estou indo para lá.
+++
Bem, existe uma teoria de que no mundo há duas ou três pessoas idênticas a você. Extremamente parecidas. Praticamente iguais. Não sei se a hipótese é exatamente essa. Na verdade, mal sei se essa teoria realmente existe. Parece ser somente algo que acabei lendo na internet, e tomei como uma teoria muito bem fundamentada e argumentada. Contudo, como agente da Mythpool, afirmo a existência de Doppelgangers, as duplicatas sobrenaturais que aparecem por aí e acabam sujando seu nome.
Naquele campo de golfe, próximo à Ponte Dragão, o caso era praticamente sobre um Doppelganger. Mas não era um Doppelganger. Não sabia exatamente do que se tratava, mas, de pé naquele gramado, estava uma garota perfeitamente idêntica a Yuna. Cada traço cirúrgico do corpo da hanyou estava metros à frente de nós.
Primeiramente, logo quando chegamos, notei que o campo de golfe era o mesmo onde Yuna venceu sua mãe, Yuki-onna. Já faziam alguns meses, e claro que a Mythpool limpou tudo direitinho, então não me surpreendi ao não encontrar nenhum vestígio da batalha entre mãe e filha.
O que também percebi foi que Suny mentiu, ou aumentou bastante as coisas. Não estava acontecendo nada no campo de golfe. Além de uma garota idêntica a Yuna estar plantada no gramado, não havia nenhum sinal de alvoroço naquele lugar. Estava calmo e pacífico como um campo de golfe deve ser às onze e meia da noite.
Exceto por nossas presenças, aquele lugar era um pedacinho de paz e sossego no meio de umas das metrópoles mais agitadas do mundo.
— Tsc.
— É... ela é igualzinha a você...
— Tsc.
A Assassina de Youkais cerrou os punhos ao meu lado. Sua feição estava sombriamente esbanjando irritação. Ela estava possessa e não tirava os olhos de seu clone. Claro, não é como se Yuna tivesse uma expressão frágil, no geral. Ela tinha os traços do rosto bem femininos e atraentes, mas, na maior parte do tempo, ela era intimidadora. Mesmo com sua beleza jovem, ela era naturalmente intimidadora.
Vosso Humilde Narrador já presenciou o olhar de desgosto e repulsa da hanyou, e confesso que não esperava ver um olhar parecido vindo dela, diante de um clone seu. Da última vez que vi aquela expressão, a garota estava na presença da Mulher da Neve.
— Tsc... eu não achei que fosse sério.
Metros à nossa frente, a outra Yuna, a duplicata, estava trajada diferente da verdadeira. Ela usava uma longa regata de basquete vermelha, que cobria metade das coxas, e tênis brancos de cano médio. O gorro cinza na cabeça era o mesmo.
Além das vestimentas, o que também a diferenciava da verdadeira Yuna, eram os olhos. Assim como os da hanyou, eram azul-escuros, mas não se via o brilho e beleza como em um par de safiras. Era como comparar joias originais com réplicas.
— Tsc. Achei que a “Jedi nas horas vagas” só estava com ciúmes e queria afastar você de mim.
— Suny? Com ciúmes... de você?
— E qual mulher não teria? Sei que entre mim e ela, você me escolheria.
— Não acha que está sendo um pouco convencida?
— Só estou sendo realista.
Yuna disse todas essas coisas rangendo os dentes em cólera. Os olhos não despregaram de seu clone, que continuava plantado no mesmo ponto, também sem tirar o olhar da Assassina de Youkais.
Enfim, Yuna deu um passo adiante. Depois outro, outro e outro.
— Aí, sua impostora, serei breve! Eu não gosto de ninguém com a minha imagem andando por esta cidade! Como você parece não ter feito nada que me dê dor de cabeça...
— Ah, com certeza eu fiz — o clone respondeu. Até a voz era a mesma. Era uma clonagem quase perfeita. — Se precisa de um pretexto para me matar, saiba que já fiz coisas contra você que nunca saberá.
— Bem, sendo assim — a hanyou estendeu a mão na direção de sua duplicata e...
— Deveria saber que não pode me congelar, Assassina de Youkais.
Engoli em seco. Será que aquele clone, tinha os mesmos poderes de Yuna? Embora fosse provável, se tratando de uma cópia, eu não conseguia acreditar, mesmo estando presenciando a falha na tentativa de congelamento de Yuna.
Se o clone tivesse os mesmos poderes, na mesma magnitude, aquele campo de golfe tinha se tornado oficialmente o local mais perigoso da cidade para um mero agente da Mythpool.
Já a hanyou, reagiu àquela situação com a maior tranquilidade. Ela já havia passado por uma situação parecida contra a mãe. Tecnicamente, já sabia como agir. Porém, daquela vez, Yuna estava vestindo uma regata de basquete mística que se transformava em uma lança carmesim. Dessa vez, ela mal tinha peças de roupa para tirar. Mesmo assim, permaneceu tranquila.
— Seu pamonha...
— Hã? — De início, pensei que ela estivesse falando comigo, mas estava se dirigindo ao seu clone.
— Não é ao gelo que você é imune — ela sorriu. — E você não tem os mesmos poderes que eu. Afinal, você nem ao menos é um clone meu.
— Oe? — Eu estava confuso.
— Mesmo que tenha minha aparência, impostor, você não tem os genes de minha mãe, então nunca poderia ter os mesmos poderes do que eu. O único motivo de eu não conseguir te congelar, é que as moléculas de oxigênio em seu organismo estão revestidas por uma energia muito parecida com o chi humano, porém mais densa.
Não sei se foi uma explicação científica ou mística. Não sei se as leis científicas se aplicam a Yuna. Às vezes penso que até as leis das artes místicas não se aplicam a ela. O importante é que ela decifrou o inimigo em seu primeiro movimento. O próximo passo era...
— Testar sua força — disse a hanyou. — Não sei quem você é, mas é o momento de eu testar sua força.
Yuna disse aquilo de maneira passiva. Foi como uma enfermeira dizendo a uma criança “não vai doer nada” antes de aplicar uma injeção.
Àquilo tudo, o clone permaneceu plácido. Parecia inabalável como uma montanha.
Então, a Assassina de Youkais se preparou. Uma lança de gelo surgiu em sua mão direita, junto de um desorientado sopro polar. Ela girou a arma gélida na mão, enquanto mexia o corpo para tomar uma posição de combate um tanto quanto excêntrica. A perna direita um pouco mais à frente, a esquerda um pouco mais para trás. Com a haste de gelo sendo segurada mais para extremidade oposta a lâmina, Yuna posicionou sua arma por trás da cabeça, fazendo-a deitar sobre seu braço esquerdo esticado na diagonal com a mão aberta, como se fosse um escorregador. Naquela posição, ela parecia uma jogadora de sinuca arrogante, que decidiu mostrar ousadia e alegria em uma de suas tacadas. Porém, era inegavelmente legal.
A pose, embora excêntrica, era de uma elegância e maestria.
O peito levemente estufado empinava os seios. O abdômen esticado enfatizava sua silhueta de boneca. Assim como os passos travados delineavam a força de suas pernas de colegial. E não é como se eu estivesse tentando sensualizar a pose de combate da garota. Aquela imagem diante de mim deveria ser esculpida em mármore, como a estátua de uma deusa. Uma deusa de gelo.
Já a duplicata, continuou sossegada, mesmo de frente com aquele par de olhos azul-escuros que brilhava de excitação em qualquer batalha, fosse em um campo de golfe ou nas planícies sórdidas do submundo.
— E aí, o que é que vai ser? — Esse costumava ser o último aviso da Assassina de Youkais para suas vítimas.
— Faça seu pior, aberração...
Aquelas palavras mal haviam adentrado o canal auditivo de Yuna quando ela se moveu. E foi nesse movimento súbito que seu clone esboçou uma pequena reação. Talvez a força de aceleração da hanyou, que ultrapassava a velocidade do som, tenha quebrado as expectativas daquela duplicata. Pois as minhas foram de queixo no chão. Não pelo impulso supersônico de Yuna, mas pelo trajeto que ela tomou até seu alvo.
Foi uma rota em arco.
Ela disparou pelo flanco direito, descrevendo um arco no gramado até seu clone. Rastro esse que me permitiu identificar a rota da garota, já que eu não a vi o percorrendo. Foi rápido demais para meus olhos acompanharem. Quando percebi, Yuna já estava golpeando na diagonal com sua lança, como se tivesse puxado uma espada das costas. O movimento foi seco, mesmo se tratando de uma lança, porém, provavelmente devido ao mal equilíbrio daquele tipo de arma, o golpe não teve a firmeza necessária para destroçar as costelas de sua duplicata. Mas o corte feito na região parecia bem fundo e doloroso.
Com certeza, mesmo sem a firmeza necessária, o ferimento teria sido bem pior se o clone não tivesse saltado para o lado na tentativa de esquiva. A duplicata não cambaleou ao tocar os pés no chão. Pousou firme, como se não tivesse sofrido nenhum arranhão. Contudo, não deixou de baixar o olhar rapidamente para verificar o estado da ferida.
Yuna puxou seu braço direito para trás e apanhou com a mão esquerda um local mais próximo da ponta de sua lança gélida, empunhando assim sua arma da melhor forma, e tomando a clássica posição de uma verdadeira lanceira.
Em resposta, a duplicata também fez surgir uma lança em sua mão, que parecia ser feita de sombras. E, como se já não bastasse a aparência, ela também imitou a pose de combate da Assassina de Youkais.
— Eu aceito seu desafio.
— Não é como se eu precisasse de sua aceitação.
Com isso, a cópia e a original se lançaram em um duelo face a face com suas lanças. Os movimentos que se sucederam naquele embate eram mais velozes que o bater das asas de um beija-flor. Para meus olhos mortais, até mesmo os vultos que as hastes desenhavam em movimento, eram difíceis de acompanhar. Porém, já havia presenciado Yuna se mover mais rápido. Não havia nenhum enigma para afirmar que a hanyou estava se segurando.
Algo que não durou muito tempo.
Foram poucos segundos até que a garota desarmasse seu clone, batendo forte com sua lança na lança adversária. A arma da duplicata, que foi jogada para o lado e se cravou no gramado, começou a evaporar em uma esquisita fumaça negra. Foi algo que Yuna não reparou. Ela estava concentrada em seu próximo movimento, acorrentado ao desarme, a Assassina de Youkais atravessou o plexo solar de sua duplicata, aumentando a velocidade de seu golpe repentinamente, para surpreender seu clone e impedi-lo de se safar como da vez anterior.
Agora a duplicata estava empalada na haste gélida de Yuna Nate.
— Você é a cópia mais fajuta que já vi na vida — disse a hanyou.
Ao golpe, o clone não reagiu dolorosamente ou de maneira sofrida. Também não havia sangue escorrendo pelo ferimento e nem mesmo banhando a lança de gelo. Era praticamente o que Yuna tentou dizer. Aquela cópia não era uma clonagem, e sim, um disfarce. Uma miragem.
— E aí, vai revelar quem você é? — Indagou a garota.
Exercendo seu direito de ficar em silêncio, a duplicata não respondeu. Ou talvez, o que aconteceu instantes depois, tenha sido uma resposta. A lança empunhada por Yuna e que atravessava o corpo de seu clone, começou a ser tomada por escuridão. Era como se banhada por petróleo, tingida pelas sombras. E aquela penumbra correu pela haste, na direção dos dedos da hanyou, que instintivamente largou sua arma de gelo e deu um passo para trás.
Após a lança ser totalmente tomada pela escuridão, assim como a arma que o clone empunhava anteriormente, ela começou a se desfazer em um obscuro vapor.
Na pele da duplicata, não havia mais nenhum ferimento. Tanto o corte nas costelas, quanto o rombo no plexo solar, foram regenerados, embora nem eu ou Yuna tivéssemos notado o momento em que isso aconteceu. Aquilo só nos mostrou que não conhecíamos tão bem o adversário naquele campo de golfe.
Afinal...
— Quem é você? — Rosnou Yuna, se mostrando mais impaciente do que já estava.
— Não vê? Eu sou Yuna...
— Ora, sua...
A hanyou cerrou seus punhos, pronta para partir novamente para cima de seu clone. Mas, entre o pensamento e a ação da Assassina de Youkais, algo surgiu em um vulto esfumaçado ao lado de sua duplicata.
Algo, não. Alguém.
Alguém de olhos vermelhos como rubis e cabelos brancos como os raios lunares. Sem camisa, com um short moletom preto e uma corrente de prata pendurada em seu pescoço.
Eu já havia visto aquele homem.
Na noite anterior, em um luxuoso apartamento.
Ele retirou a cabeça de uma mulher do forno. Não havia como esquecer.
O que eu não sabia é...
— Boa noite, norinha — disse o Tengu a Yuna, me deixando pasmo.
A hanyou soluçou ao ver aquele youkai. Parecia ter visto um fantasma. Sua reação foi de alguém que se deparou com um conhecido que foi dado como morto. Seus punhos cerrados para o ataque, relaxaram e seus dedos caíram sem ação. Ela chegou a dar meio passo para trás, mas, do nada, hesitou em recuar. Como se lembrasse de sua sina como Assassina de Youkais, a expressão de perplexidade de Yuna se transformou em uma feição mais determinada.
— Você...! — Com um ranger de dentes, uma dúzia de lanças de gelo surgiram ao redor da hanyou, direcionadas para a dupla à sua frente. Daquela distância, mesmo para os seres sobrenaturais, seria praticamente impossível sair ileso.
Entretanto, o Tengu tinha seus truques.
Ele tocou no ombro da duplicata de Yuna e, em um passe de mágica, era Vosso Humilde Narrador que estava ao lado do youkai. Ele trocou minha posição com a do clone da hanyou. Ele teletransportou a duplicata para lá e, em troca, fui parar ao seu lado.
Ao ver isso, Yuna hesitou mais uma vez, mas não desfez as lanças no estado sólido da água. Uma dúzia de afiadas pontas gélidas estavam mirando contra nós.
— Meio exagerado — provocou Tengu. — Todas essas armas apontadas para nós, mas está com medo de usar. Vamos, dispare.
— Acha que me importo com ele? — Disse ela, e eu esperava que aquilo fosse um blefe.
— Claro que não se importa. Não é você a coração de gelo, a meia-humana de sangue frio?
— Eu... — Yuna baixou os ombros. As lanças se desfizeram em neve ao seu redor. — Eu... não sou como minha mãe.
— Verdade... você é só a cadelinha do meu filho, não? — O youkai sorriu com suas próprias palavras.
— Tsc... — a hanyou só desviou o olhar, com sua face expressando vergonha pela primeira vez diante de mim.
Yuna foi ofendida. Aquelas palavras do Tengu as expuseram ao ridículo, quase como quando sua mãe retirou seu gorro em Quioto. E, ao ver aquele rostinho ofendido, não consegui evitar a raiva subir até minha cabeça.
No lado esquerdo de minha cintura, eu escondia uma faca de combate, necessária para sair de algumas situações que são riscos comuns da minha área de trabalho. Eu a puxei sem discrição alguma e me movi na intenção de perfurar o youkai ao meu lado. Porém, como já era de se esperar, ele se teletransportou.
Foi aparecer no local onde eu estava, antes de seu truque sujo de me fazer de refém. Ao lado da duplicata de Yuna, ele a tocou no ombro e, por fim, os dois sumiram do campo de golfe.
Sem deixarem um rastro sequer.
Então...
— Yuna...
— Eu tô dentro.
Ao voltar minha atenção para ela, a Assassina de Youkais já me encarava com seus olhos azul-escuros.
— Como?
— Eu vou ajudar você, seu pamonha. Eu serei sua espada.