Capítulos (3 de 23) 02 May, 2020
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— Você está certa.
Na base do rebatedor, com o já famoso brilho carmesim, a imagem do Obake foi tomando forma. Seu corpo humanoide feito da mais pura penumbra surgiu sobre a pequena pedra branca pentagonal. Aquele manequim moldado pela escuridão não tinha olhos, mas nós podíamos sentir que ele nos observava com atenção.
— Você está certa, Assassina de Youkais. Foi como o Tengu disse, é uma estrategista natural, sempre analisando o terreno e o inimigo.
— Deixe os elogios para quando contar minha história no Inferno. — Yuna disse convicta, e embora fosse mais uma de suas falas arrogantes, tenho de admitir que soou mais legal do que poderia ser.
E o Obake riu.
— Você se tornou o temor de muitos youkais desde que matou Yuki-onna. Das duas vezes que nos enfrentamos, você mostrou grande habilidade em combate, mesmo sem usar seus poderes como se deve.
— Não é como se eu não tivesse tentado. Mas seu corpo parece ser revestido por chi. Não dá para congelar essa energia. Poderia revesti-lo com gelo, mas, se eu não ficasse lá para mantê-lo, não importa a grossura, acabaria sendo consumido por sua energia escura. Confesso que ainda não sei exatamente como você funciona. De qualquer forma, você é um youkai e eu sou a Assassina de Youkais.
— Suponho que tenha um sentimento negativo por mim, já que tomei a forma de seu querido pai.
A hanyou retirou sua luva do braço esquerdo, sem dar uma resposta ao Obake. Depois, ela retirou os tênis, com a elegância de uma bailarina. A garota esfregou de leve o par de pãezinhos na base do arremessador. Eram tão bonitinhos que nem dava para acreditar que um daqueles pés havia arrancando a cabeça de meu antigo diretor na Mythpool.
— Por que está se despindo? — Não pude deixar de perguntar.
— Seu pedófilo, não se anime, não. Parei por aqui. — Yuna respondeu sem me olhar, mantendo os olhos focados no youkai adiante. — Escuta, Obake, é certo que você ampliou seus poderes de metamorfose com o Kagami, mas, sinto que não está com ele. Onde ele está?
— É uma ótima pergunta, assassina. Atualmente, eu não sei. Meu objetivo com o escudo era de somente ampliar meus poderes. Contudo, minha missão era entregá-lo àquele que me deu a oportunidade de caminhar livre por esse mundo mais uma vez.
— Ora, ora, então a mais improvável de minhas teorias estava correta.
— Hmph, chegou mesmo a pensar tão longe?
— E por que não? Obakes são uma raça de youkais extinta há anos. Sim, poderia ser que um ou outro acabou sobrevivendo, e esse foi o meu primeiro pensamento quando descobri sua identidade. Mas, a ideia de que um Obake foi trazido de volta à vida por alguém, não deixou de atiçar meus pensamentos. E, já que estamos em um diálogo saudável, gostaria de saber para quem você entregou o escudo?
Vosso Humilde Narrador também gostaria. Eu estava me remoendo no banco de reservas.
— Para quem? — O youkai hesitou por um momento. — Acho que me expressei mal anteriormente. Não foi para uma única pessoa, e sim, para um grupo. Um grupo do outro lado do globo. Eles também trouxeram o Tengu de volta à vida.
— Que grupo é esse? — A hanyou fez a pergunta que não quer calar.
— A sigla é NIP. É só o que sei.
Àquela resposta, mais especificamente àquela sigla, um calafrio percorreu meu corpo, me fazendo estremecer. Naquele momento, eu não sabia exatamente a que tipo de grupo aquela sigla se referia. Nada me vinha em mente. Porém, NIP era algo que passara por meus ouvidos, e aquele calafrio devia ser um alerta a algo que eu não deveria ter esquecido.
— Hmph — Yuna sorriu. — É claro que tem alguém por trás disso... mas isso é problema para depois. Primeiro, Obake, vamos resolver nossas diferenças. Vamos terminar o que começamos naquele campo de golfe. Sem armas ou truques. Somente punhos. Sente que está justo para você?
— Sem armas e truques, é?
— Palavra de escoteira.
A garota estava ditando as regras do confronto, ajustando-as para que o embate fosse justo para ambas as partes. Eu já a vi fazendo isso, mas não contra alguém que caminhou descuidadamente por seu campo minado particular. E... escoteira?
— Por mim tudo bem, Assassina de Youkais. Um duelo até a morte decidido da maneira mais arcaica. Regras espartanas?
— Não pretendo ser tão formal — respondeu a hanyou. Ela tomou sua posição de combate. Uma pose de Kung-Fu, enfatizando o estilo Tigre. Após isso, seus braços e pernas foram revestidos por uma camada resistente de gelo.
— Pensei que tivesse dito sem truques — comentou o youkai.
— Pois é, mas sei que o contato com sua pele esquisita é perigoso, como me mostrou em nosso primeiro encontro. Isso aqui é só uma precaução que tornará nosso duelo mais justo.
— Hmm, sei... vou aceitar essa condição. Mas, acha mesmo que isso irá adiar o inevitável?
— Acho sim. Eu sou uma menina bem esperta.
Esperta? A miserável é um gênio. Ela é do tipo de pessoa que nasce para fazer o que faz. No caso de Yuna, ela não nasceu para ser uma assassina, mas sim, para ser uma máquina de guerra. Tanto sua força, quanto agilidade e inteligência, trabalhavam em um sincronismo harmoniosamente elegante que a transformava em uma arma de destruição em massa, disfarçada de anjo da neve.
— Sendo assim — o Obake também tomou sua posição de combate —, faça seu pior, Assassina de Youkais!
E ela partiu para fazê-lo. Da base do arremessador para base do rebatedor, a hanyou avançou mais veloz do que qualquer bola já lançada em uma partida de basebol. Todos os recordes teriam sido quebrados caso ela fosse uma das pequenas esferas de couro usadas naquele esporte. O youkai, mesmo em posição de batalha, pareceu não estar preparado para tal velocidade. Mas não significa que ele não reagiu. O Obake tentou “rebater” Yuna com um cruzado de direita, que rasgou o ar com um zunido. Porém, ele não contava com a astúcia da garota, que, aproveitando suas botas de gelo, deslizou nos últimos centímetros ante o youkai, flexionando os joelhos e inclinando levemente o tronco, assim se safando do punho negro do ser sobrenatural. Aproveitando a velocidade que não diminuiu, a assassina colidiu com o corpo escuro do youkai, golpeando-o com o cotovelo seu plexo solar.
O estalo que soou daquele choque foi agoniante. Junto com o som, o corpo do Obake deixou de tocar o solo. Levitou sem forças como se fosse um boneco de pano. No instante seguinte, Yuna girou os calcanhares. Suas mãos revestidas pelo estado sólido da água, apanharam um braço do youkai. E, de trás para frente, por cima de seu ombro, a hanyou lançou o Obake, ironicamente da base do rebatedor na direção da base do arremessador. Foi como uma reversal russa.
Bem, a base do arremessador não era o objetivo da Assassina de Youkais. O corpo do Obake passou lotado por aquele ponto e também pela segunda base mais atrás. Estava para se chocar com o muro que separava a arquibancada do campo, mas, como se despertasse de um pesadelo, o youkai rodopiou em pleno ar e tocou os pés no chão, deslizando na terra para frear o próprio corpo.
— Francamente — disse ele —, não deveria ter aceito essas condições.
— Se não tivesse aceito, eu já teria te matado, seu pamonha. Não pretendo pegar leve com alguém que se passou por meu pai.
Obake não rebateu as palavras de Yuna com mais palavras. Ele decidiu não continuar com o diálogo no meio da ação. Como uma rã, o youkai saltou do ponto onde se encontrava para a base do rebatedor. Seu corpo desenhou um arco no ar na direção da hanyou, e caiu meteórico em uma voadora de dois pés contra a garota. E a Assassina de Youkais não demonstrou covardia ao ataque de Obake. Ela pressionou os pés no solo, deixando seu corpo firme como uma coluna de aço, e cruzou os braços em X à frente do rosto, que inclinou para observar a violenta queda do youkai.
Os pés do ser sobrenatural pousaram nos antebraços revestidos de gelo da assassina. Para um humano normal, aquele golpe provavelmente faria metade dos braços se soltarem do resto do corpo, simples como a quebra de braços de um boneco articulado. Mas, se tratando de Yuna Nate, a única coisa notável que aconteceu foi uma aureola de poeira saltando em espiral ao seu redor. O corpo da hanyou nem ao menos estremeceu com o impacto.
Em um equilíbrio tão sobre-humano quanto a si mesmo, o Obake se manteve genuflexo sobre os braços de gelo da garota. Instantes depois, a proteção no estado sólido da água, cuja cor azul-gélida se destacava na noite, começou a ser contaminada pela energia escura do youkai.
Yuna não demorou para compreender o perigo que corria. Ela abriu os braços, empurrando o Obake de cima dela, e logo em seguida saltou para trás, tomando uma distância que parecia ser segura. Ela desfez as partes das proteções braçais tomadas pela energia negra, em neve. Depois, como um avançado fator de cura, a proteção de gelo envolveu novamente a pele da assassina.
O youkai, por sua vez, logo que sentiu o gramado na sola dos pés, avançou com tudo contra a hanyou, sem deixar brechas para que ela pudesse respirar. Ele foi na ignorância, direto com um chute reto após um giro. Não era nenhum movimento complexo demais ou rápido demais para que Yuna não conseguisse se esquivar. Na fração de tempo que o Obake demorou para percorrer os metros até ela, a garota trocou o estilo de arte marcial, indo do Kung-Fu para a Capoeira. Ao chute do youkai, ela gingou para o lado, desviando do golpe e contra-atacando com um chute parafuso que acertou em cheio a face do ser sobrenatural.
E então, chegou a hora de acabar com aquela brincadeira. O Obake cambaleou com o golpe que sofrera tão diretamente. Sem a devida concentração necessária para lidar com a destreza da Assassina de Youkais, aquele manequim feito de sombras não conseguiu reagir ao que se sucedeu após o chute. Yuna o golpeou com um soco de uma polegada no meio de seu tórax. A agilidade com que ela preparou aquele golpe, foi tão assombrosa quanto o disparo de pressão que ele gerou.
Foi como se um projétil de ar atravessasse o corpo do Obake e voasse até o muro da arquibancada, o trincando e afundando na mesma linha do punho da hanyou.
Como eu esperava, o corpo do youkai não foi lançado com o impacto do soco de uma polegada. O efeito foi diferente e o choque do punho de Yuna com o tórax do ser sobrenatural, pareceu travar por completo seu corpo. Eis que a garota baixou seu braço. A sobrepeliz de gelo se desfez de seus membros. O Obake, sem o apoio do punho em seu tronco, caiu de joelhos e desabou de cara no chão, enquanto a híbrida de sua espécie contornava seu corpo derrotado, indo em direção à base do arremessador.
Ela foi pegar sua luva e seus tênis.
O rosto sério podia ser esculpido em mármore por conta de sua mistura de beleza e força, quase como uma deusa guerreira adolescente.
Entretanto, aquela visão da jovem donzela de gelo vagando vitoriosa em direção aos seus pertences, foi interrompida por um já bem conhecido brilho carmesim. Como um desenho sendo apagado por uma borracha, o corpo abatido do Obake se desfez com esse brilho, desaparecendo do local onde estava estatelado, e surgindo com o mesmo brilho sobre a segunda base, metros adiante da hanyou.
A garota parou.
Ela piscou duas vezes, processando a informação.
— Francamente — suspirou. Suas mãos foram para sua cintura. — Não tínhamos combinado sem truques? Achei que ao menos conseguiria manter um acordo simples como este.
— Não seria nada sábio fazer um acordo desses. Sei de nossas diferenças de força. E, você não achou mesmo que eu iria entrar no seu jogo tão facilmente, não é? Não esperava tamanha ingenuidade.
— Pois é, confesso que fui ingênua, Obake. Não deveria esperar qualquer tipo de ação honrosa vindo de alguém que vive das aparências dos outros. Sendo assim, vamos fazer do seu jeito. Eu escolhi te deixar viver preso em uma das celas esquisitas da Mythpool, mas se quer lutar pela sua nova vida e pela sua liberdade, youkai, eu aceito o seu desafio.
A mão direita de Yuna saiu da cintura, movendo-se para frente, onde uma lança de gelo surgiu saltando para o meio de seus dedos apostos. Ela apanhou sua arma gélida e logo tomou sua posição de lanceira, levando a mão esquerda também à haste. E, foi em seguida disso que me dei conta de que a garota não estava para brincadeiras. De seu corpo em posição de combate, para ambos os lados, duas duplas de clones apareceram na mesma posição e empunhando a mesma arma. Quatro clones perfeitos que pareciam ter sido espirrados da pele da Assassina de Youkais, agora encaravam vorazes o manequim feito de sombras.
Sinceramente, aquilo era o sonho de muito marmanjo. Cinco pares dos olhos azuis mais bonitos do Japão em um único espaço curto. Era uma visão monumental para mim.
Queria poder dizer o mesmo pelo Obake.
Não era possível ler sua expressão facial, mas, a julgar pelas suas pernas sem muita firmeza, era possível dizer que o youkai não estava se sentindo muito seguro na situação em que se encontrava. Cinco Assassinas de Youkais estavam a poucos metros da base do arremessador e, se os clones tivessem a mesma força e velocidade da original, era mais do que certo que o ser sobrenatural voltaria para o mundo dos mortos em um piscar de olhos.
Foi provavelmente sabendo de sua desvantagem perante Yuna. Sabendo que, não importasse as regras ou circunstâncias do combate, a hanyou estaria sempre um nível acima. Foi baseado nessa grandiosa diferença, que o Obake usou sua carta coringa.
Ele tomou a forma de Nicolas Nate.
Novamente, se transformou no pai da assassina.
E Yuna reagiu àquilo. A original ao centro de suas cópias, rangeu os dentes por um breve momento, e logo tentou disfarçar sua reação negativa à atitude do youkai. Junto de seus clones, ela manteve seu gélido olhar voraz, agora ameaçando com seu par de safiras a imagem de seu próprio pai.
— Então, filha, não vai atacar? — Disse Nicolas. — Não consegue avançar? Mesmo sabendo que não sou real, você não consegue me atacar, é isso?
— Ei, mestra — chamou um clone de Yuna. — É só dar o comando que nós atacamos por você.
— Sim, sim — disse outro —, nós podemos fazer esse serviço sujo, mestra.
A Assassina de Youkais ignorou suas copias vassalas e manteve os olhos fixos no Obake. Ela ajeitou milimetricamente a postura, que havia saído um pouco do eixo. A garota estava tentando tirar forças de algum lugar no mais profundo de seu âmago para realizar sua investida decisiva. Alguns segundos de uma exuberante força mental seriam mais do que suficiente para ela e seus clones mutilarem o youkai. Contudo, já era possível notar o corpo da hanyou tremulo de nervosismo. Considerando a reação dela na escola em Okinawa, deveria ser um esforço muito grande só para se manter naquela posição ofensiva contra a imagem de seu pai.
— E aí, o que é que vai ser? — Perguntou Nicolas.
— É, mestra, estamos...
POOF! Os clones se desfizeram em neve.
Com uma vontade divina, Yuna desfez suas cópias que colocaram o Obake em situação de xeque.
Em seguida, a garota baixou os ombros. Ergueu o corpo, saindo de sua posição de lanceira. Assim como os clones, a lança em suas mãos se esfarelou em flocos albinos.
— Mesmo eu sabendo que é só uma ilusão... — ela começou. — Mesmo que não seja real, eu não posso... eu não consigo fazer mal a única pessoa que amei... uma droga, não acha?
— No seu caso — disse o youkai —, é realmente uma pena.
Puxar arma. Destravar. Mirar... Yuna soluçou com a surpresa...
Meu disparo não foi certeiro. Na verdade, eu errei. O projétil de adamantina passou um pouco à frente do rosto do Obake. O mesmo cessou sua caminhada logo no início, e voltou sua face em minha direção. E eu mantive-o na mira, sem baixar minha arma.
— Não vou deixar que toque em Yuna dessa maneira covarde — falei, enquanto vagava para o espaço entre ele e a híbrida. — Mesmo que isso possa piorar a cabeça dessa criança, se você tentar tocá-la nessa forma... não, em qualquer forma, eu irei descarregar meu pente nesse seu corpo esquisito!
— O que é isso? Está tentando me impedir de abraçar minha própria filha?
— Para trás! Você não é o pai dela!
— Seu pamonha...
— Você também não me interrompa! — Clamei sem olhar para ela, já às minhas costas. — Não vou te deixar ser torturada por ele!
O youkai sorriu, como se tivesse escutado uma boa piada.
— Por que a protege, humano? Sabe que posso passar por você. Sabe que não tem balas o suficiente e essa tremedeira não vai lhe ajudar a acertar algum ponto vital em mim. Então, por que arrisca a vida por uma não humana?
— Pois para mim, ela é humana! Ela pode não ter tido uma infância normal. Ela pode ter sido encontrada por uma organização de assassinos sobrenaturais. Ela pode ter sido criada para matar. Ela pode ter orelhas de lobo ou chifres. Ela pode constantemente me acusar de pedofilia. Ela pode ter matado a própria mãe. E ela pode até ter perdido a virgindade com um poço de arrogância. Mesmo ela sendo muita coisa de ruim, para mim, ela é humana! E, hoje, é difícil eu me imaginar vivendo sem ser chamado de pamonha uma vez ou outra! Portanto, Obake, mais um passo e eu...!
Bem, ele deu o seu passo. Um poderoso passo que o lançou como um míssil em minha direção. Foi muito de repente e veloz. Meu cérebro entrou em pane e meus neurônios não me deram o comando para disparar contra o youkai. Meu corpo somente desviou o olhar assustado e fechou os olhos, esperando o fim. Uma morte cruel em uma atitude emocionada para proteger uma assassina. Mas, depois de alguns instantes travado na mesma posição, minha mente me avisou que eu estava vivo.
Eu abri os olhos.
Eu voltei meu olhar para frente.
— Agora eu entendo, seu pamonha. Você realmente tem uma quedinha por mim, seu taradinho. Eu fico muito feliz... nunca pensei que alguém tentaria se sacrificar por mim como meu pai. Obrigada.
Diante de meus olhos, a visão era deslumbrante, pelo menos para mim. A Assassina de Youkais se colocou à minha frente, obstruindo o Obake, pressionando a boca de minha pistola contra a testa do ser sobrenatural. Eu não sei como ela me desarmou, ou quando me desarmou, mas ela me desarmou e apontou aquela arma de metal mitológico para a cabeça do youkai.
Para a cabeça de Nicolas Nate.
Rendido, e provavelmente pego tão de surpresa como eu, o Obake não tinha para onde correr. Estava em choque. Ele poderia ter até cogitado a interferência da garota em seu ataque contra mim, mas, daquela maneira, colocando uma arma de fogo de adamantina em seu terceiro olho. Duvido muito. Só pela expressão assustada dele, eu poderia apostar que ele não contava com aquela astúcia.
— Filha, você vai mesmo...
Por conta de sua ascendência sobrenatural, a destreza de Yuna era bem maior do que a de um agente treinado como Vosso Humilde Narrador. O dedo dela puxou o gatilho tão subitamente, que pensei que a arma atrasaria seu disparo. Porém, um recurso de alta tecnologia com uma pitada de mitologia, não deixaria de cumprir com sua única missão naquele momento. A missão de cuspir um projétil de adamantina através do crânio do youkai escuro.
Uma missão concluída com sucesso.
A imagem de Nicolas que o Obake havia tomado, se dissipou, o fazendo voltar a ser um manequim feito de sombras, agora com um rombo enorme no meio da testa. E enfim, dessa vez, definitivamente, o corpo do youkai desabou no gramado. Era sua segunda e última viagem para o mundo dos mortos.
A garota baixou a arma.
— Eu deveria ter dito Jackpot, não acha? — Perguntou ela, me olhando por cima do ombro. E ela já estava de volta ao seu estado habitual.
Eis que minhas dívidas bateram à porta. A pressão e o medo que eu contive firmemente, me colocaram de joelho na grama. Eu olhei ao redor, sentindo meu coração batendo e meu sangue ainda pulsando em minhas veias. A universidade que estava em chamas, estava agora intacta. Era como se nada daquilo tivesse acontecido.
Mas aconteceu.
Botei para fora meu café da manhã.
— Ai, seu pamonha — resmungou Yuna, se virando para mim. — Se você não tem estomago, deveria trocar de emprego.
— Não é isso... não é a morte do Obake — falei. — É meio que uma forma de aliviar o peso.
— Isso é bulimia. Cuidado, pode ficar com anorexia...
— Não é o momento para piadas desse tipo.
— E por que não? Qual seria o melhor momento para o bom humor do que o momento em que descobri meu cavaleiro de armadura.
— Hã? Cavaleiro...? Quem?
— Como quem? — Sem hesitar, ela apontou para mim. — Só poderia ser você.
— ...
— O que foi, seu pamonha? Eu acabei de fazer uma declaração...
— Você ficou meio dodói, né?
— É, talvez. — A hanyou girou a pistola na mão e me entregou, enquanto me ajudava a levantar com a outra. — Eu só acho que devo te recompensar de alguma forma. Não gosto de ficar devendo nada para ninguém. Sendo assim, vai, pode apertá-los.
— Oe? Do que você está falando?
— Dos meus peitos, seu pamonha, não se faça de desentendido. Como recompensa pelo seu ato de bravura, pode pegá-los.
— Yuna...
— Diga, senhor supremo.
— Quê? Como assim?
— Hã, não quer que eu o chame assim enquanto acaricia meus seios?
— Não! Não, não, não... — eu respirei fundo. Meus olhos foram diretamente de encontro com aquele par de safiras à frente, com aquela feição de menina inocente que a assassina fazia propositalmente para me provocar... ou...
Minha mão se moveu, mas não foi em um daqueles seios que ela tocou. Meus dedos deslizaram em seu rosto, indo até sua orelha. A expressão provocativa foi completamente desmanchada com aquele gesto meu.
— Yuna, não precisa fingir. Você pode chorar.
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Agora, a moral da história. Ou melhor, não, isto está mais para um interlúdio do que um epílogo. Quando começamos a conversar, leitor, eu mencionei algo sobre Yuna ter recebido uma alcunha, ou um apelido carinhoso, de um certo deus misterioso. Disse que, por conta do que ela teve de enfrentar nas férias de verão, recebeu o epíteto de Cavaleira de Cristal. E sim, pode-se dizer que esta história é o motivo da hanyou ter recebido tal honra do mais alto escalão. Contudo, o que, de fato, oficializou esse nome, não foi ter sido mais forte do que seu passado traumático e ter mandado o Obake de volta para as mãos da morte.
Até porque, a Operação Festa da Firma foi um fracasso.
Embora a Kitsune tenha sido morta, assim como o Obake, esse não era o objetivo da missão. Descobrir o que o grupo de youkais queria e impedir isso, era o verdadeiro foco. E, no final, só descobrimos que o grupo era terceirizado por uma força maior para conseguir o escudo Kagami.
NIP.
Essa era a sigla de seu nome, mas não é o caso em questão.
Após Yuna derrotar o youkai usando a imagem de seu pai, a garota tentou esconder e segurar a terrível tristeza de ver a imagem de seu pai falecendo tão brutalmente, mesmo sendo uma ilusão. Fingindo um repentino bom humor, a assassina me deu um passe-livre para apertar seus seios. Aquilo poderia ser mais uma das brincadeiras provocativas que ela acabava fazendo uma vez ou outra, porém, me pareceu forçado demais para ela, dada a situação.
Vosso Humilde Narrador viu por baixo de sua máscara.
Até hoje imagino quanto tempo a Assassina de Youkais ficou sem receber um abraço sincero.
— Você pode chorar.
Ao ouvir isso, foi como se tivesse segurando algo muito pesado e repentinamente o deixasse cair. Ela cambaleou contra mim quando as primeiras lagrimas vazaram, e deitou seu rosto em meu peito. Depois de esconder sua face, a hanyou clamou, envolvendo seus braços em minha cintura, enquanto suas lagrimas gélidas molhavam meu uniforme.
Chegava a ser desesperador aquela cena. O ápice do lado humano de Yuna sendo jorrado em uma cachoeira de lágrimas sobre meu peito.
Para ela, o mundo poderia acabar naquele momento.
Ou, aquele já era o prólogo do fim do seu mundo.
— Deve ter sido complicado sem mim — comentou Suny, ao meu relatório da missão.
— Sim — admiti. Não estava ali para contrariar a agente 2k9. — Com você, tudo seria mais fácil. Talvez tivéssemos resolvido tudo em Okinawa.
— Mas você preferiu a híbrida. E no final, falhou em sua missão.
— Não, Suny, não começa...
— Relaxa — ela sorriu. — Não estou mais possessa em relação a suas decisões emocionadas. Mas saiba que não tirei aquela pirralha da minha lista negra.
Então, eu sorri. Aliviado de um lado, preocupado e sem graça do outro.
— Bem, não foi para isso que te chamei aqui em casa — continuou ela. — Tem alguém que quer conhecer você.
— Conhecer?
— Não é alguém que eu quero te apresentar. É alguém que quer realmente conhecer você.
— Então... tudo bem...
Ao meu projeto de resposta, minha parceira assentiu e saiu da sala. Segundos depois, vindo pela entrada da cozinha, um homem apareceu. Um homem que eu já tinha visto por foto e ouvido falar pelos corredores da Mythpool.
— Não me responsabilizo por sustos a seguir — falou ele.
No momento seguinte, após ele erguer os braços, como se para mostrar que estava desarmado, seu corpo brilhou com raios azuis em um turbilhão de magia. Em um piscar de olhos, o homem se transformou. Aquele homem era conhecido como Doz, um detetive particular da Mythpool, contratado pelo próprio presidente. Mas, diante de meus olhos, a aparência genérica do mais bem pago agente, havia mudado drasticamente. Um jovem de cabelos longos, loiros, brilhantes como fios de ouro. Vestimentas brancas casuais, e muito bem limpas. Olhos azul-claros, cheios de energia e tempestuosos, que impunham uma carga de respeito àquele homem.
— Obake?
— Com certeza não — respondeu ele. — Para ser sincero, deveria me sentir ofendido, mas relevarei.
— Então, quem é você? Suny, isso não tem...
— Não seja tão medroso, agente. Vamos direto ao assunto e acabamos logo com isso.
— Assunto?
— Sobre a Cavaleira de Cristal, ora.
— Cavaleira... não conheço nenhuma...
— Mas claro que conhece, não diga besteiras. Você deve ser o único humano que conhece Yuna Nate.
— A Yuna... cavaleira? Que papo esquisito é esse?
— Pois bem, 3k1, eu andei monitorando sua última missão e vi aquela garota com você. Uma hanyou, não é? Hmph, ela é incrivelmente habilidosa, não só pelos poderes, mas por como consegue agir mesmo sem eles. É quase uma semideusa.
— E o que tem? O que quer com ela?
— Quero que ela entre para minhas Forças Aladas.
— Como assim? O que está havendo aqui?
— Eu sou Zeus, agente. O Senhor do Olimpo.
Engoli em seco. O show de raios. A aparência. Forças Aladas. Aquele homem diante de mim era mesmo Zeus? Significa que Doz e o Senhor do Olimpo são a mesma pessoa? E por que ele quer Yuna em suas Forças? Eu sabia que a Mythpool tinha contato com muita coisa além de nossa atmosfera, mas, um deus infiltrado era uma grandíssima novidade.
— Deve ser confuso, eu sei — continuou o deus. — Suny disse que você é confiável, então espero que guarde esse segredo.
— Suny sabia...?
— Ah, sim, desde a Batalha em Varsóvia.
Uau. Minha mente fez BOOM.
— Agora, voltando ao assunto...
— A resposta é não — eu interrompi um deus? Que tipo de suicida eu sou?
— Não?
— É... sabe, não posso responder por ela. Mas, se for pedir pessoalmente, a resposta será a mesma que te dei aqui. Yuna tem a vida dela e já tem problemas demais. Fora que, ela não é uma heroína.
O Senhor do Olimpo baixou os ombros.
— Entendo. Infelizmente, não posso falar com ela pessoalmente. Esperava que você pudesse conversar com ela, mas se o que diz é verdade, ao menos valeu a tentativa, não é elegante insistir. Até porque, na situação em que nós, deuses, nos encontramos nesse mundo moderno, já é complicado viver como o Detetive Doz.
— Se serve de consolo, estou bem surpreso.
— Obrigado — ele sorriu, antes de dar as costas para mim. — Ah, gostei de como foi audacioso agora, conversando comigo. Também estou bem surpreso, considerando suas atuações em suas missões.
Sinto que ele estava tentando me gozar, mas não quis abusar da sorte.
— Aliás, agente 3k1 — o Senhor do Olimpo me olhou por cima do ombro —, em um encontro futuro, espero que não me interrompa novamente.