Capítulos (3 de 23) 02 May, 2020
Red: 002
— E então, encontrou alguma pista, Ulim?
Eram os últimos minutos do dia quando cheguei de volta à AAA. Faziam um pouco mais de quarenta e oito horas desde que o Tengu sumiu com seu filho, Tetsu Tetsuya. Minha busca começou não muito tempo depois, quando voltei com Yuna e o agente de Okinawa. E desde o início de minha procura...
— Não encontrei nada, mestre. Perdão.
Meu mestre era Mena Kitsune, o Assassino de Dragões. Na Associação ele era o mais poderoso dos assassinos. Tetsu ocupava o segundo lugar, e ele não se dava muito bem com meu mestre. Não é como se eles não se gostassem, na verdade. Eles eram companheiros, afinal. Pouquíssimas vezes os dois foram juntos em uma missão, simplesmente porque pouquíssimas missões necessitavam que os dois unissem forças.
Mesmo o Assassino Intocável não tendo muita afinidade com meu mestre, ele não deixou de se sentir apreensivo quanto ao sequestro de Tetsu. Aos olhos de meu mestre, ele não deixava de ser só um garoto rebelde.
— Não precisa se desculpar, Ulim. Fez um bom trabalho.
— Mesmo assim...
— Vou fazer algumas pesquisas antes de voltarmos à procura. Falarei com a chefe, e se necessário começaremos uma situação de emergência. Por ora, descanse, Ulim. Yuna está em seu quarto, meio abatida. Por que não vai fazer um pouco de companhia a ela? Acho que será bom para ambos.
E lá fui eu.
Obedecendo ao comando de meu mestre e também seguindo seu conselho, minhas patas me levaram até o recanto da Assassina de Youkais.
Eu só não vejo a relação entre a guria e descanso.
— Canino entrando. — Como não podia bater na porta, eu sempre anunciava minha chegada com essa fala. Era um código nosso. Já que ela dificilmente trancava a porta, as pessoas tinham o costume de bater e espiar. Não por maldade, eu espero. No meu caso, sendo só um lobo, eu avisava minha chegada e logo ia entrando. E não é como se Yuna tivesse algo a esconder ou tivesse vergonha de ser vista saindo do banho, acho que ela só não gostava de levar sustos.
E já que falei sobre vergonha...
— Oi, Ulim...
Como um inugami, diferente da visão de um canino comum, eu consigo enxergar todas as cores normalmente. Latido isso, a visão de Yuna nua, abraçando um dakimakura do Homem de Ferro, foi processada com a qualidade máxima por meus globos oculares.
— Guria! O que está fazendo?!
— Abraçando meu travesseiro...
— Sim, mas... — eu empurrei a porta com minhas patas traseiras.
— Por que fechou? Não tenho vergonha do meu estado depressivo. Aliás, do jeito que estou, deve ser até um colírio para os olhos de quem vê.
A guria estava deitada de bruços em sua cama, envolvendo o dakimakura com seus braços, e pressionando seus seios e rosto contra a imagem estampada do super-herói. E, diferente dos outros deuteragonistas desta série, eu não tenho nenhum desejo carnal pela Assassina de Youkais. Afinal, eu sou um lobo, líder de alcateia. Contudo, não posso negar a formosura simétrica do corpo da guria. Não fosse pelo seu rosto jovem, seria difícil acreditar que ela tinha só dezesseis anos de idade.
— Você está olhando para minha bunda, seu pamonha.
— Oe?
— Não vai me dizer que quer arrancar um pedaço com seus dentes de sabre.
Embora ela estivesse dizendo coisas sem pudor como é costumeiro de seu humor habitual, as palavras eram lançadas de sua boca com uma forma melancólica. Fazia parecer que ela estava sendo forçada a dizer aquelas coisas.
— Claro que não quero ter nenhum contato físico com você enquanto estiver nua.
— Que ótimo. Se existe algo que eu odeio no mundo é zoofilia.
— Como?! O que estava pensando que eu iria fazer?!
— Ah, nada. Não tem graça porque você é um cachorro. Se fosse um homem, mesmo o mais pervertido ficaria nervoso e constrangido com esta situação. Mas com você, não tem a menor graça.
— Deveria agradecer por isso.
— É, sim, verdade. Mas seria engraçado vê-lo abanando o rabinho se eu afastasse minhas pernas só um pouco.
— Você precisa ser estudada, guria. Meu instinto diz que ainda há salvação.
Ela não respondeu. Virou a face para o travesseiro e afundou seu rosto nele. E como canino que sou, tenho um certo carinho por Yuna e não pude simplesmente ignorar aquele estado de tristeza dela.
— Vamos, guria, solta o verbo. Por que está tão desanimada?
Ela virou um pouco o rosto para mim, desenterrando metade dele do dakimakura.
— Estou de castigo.
— Disso eu tenho ciência.
— Não. Estou de castigo, por ter fugido do castigo. Um castigo em dobro.
— Tsc, só isso? Não é o suficiente para abalá-la, guria. Eu conheço seu cheiro. Aconteceu alguma coisa, não é? Da última vez que vi você em um estado parecido, foi quando matou sua mãe.
— Quando matei minha mãe, eu estava bem melhor do que agora.
— E é exatamente isso que me intriga.
— Eu... não sei se... — como se desistisse da posição em que estava, ainda abraçada ao travesseiro, Yuna jogou as pernas para fora do colchão, ao mesmo tempo que ergueu o torso. Agora sentada na beirada da cama, ela abriu as pernas, mas o dakimakura agarrado em seus braços ficou entre suas coxas, como uma censura da vida real.
— Se precisa dizer algo, guria, sabe que sou o melhor ouvinte deste lugar.
— ...
— Guria...?
Demorei um pouco mais do que o normal para reparar, mas os olhos de Yuna estavam lacrimejando. Ela escondeu os lábios e o nariz atrás do travesseiro e abraçou com mais força a imagem do Homem de Ferro. E por fim, as lagrimas começaram a escorrer por seu rostinho angelical.
— Eu... sou um monstro...?
— Monstro? O que quer dizer?
— Eu matei meu pai... eu criei coragem para isso...
— Guria, não, seu pai faleceu há anos.
— Eu sei, mas... era idêntico a ele...
— Ah, entendi. Está falando do Obake, não é?
E ela assentiu.
— Então, você o matou? Deveria estar feliz, ora.
— Não foi nele em quem eu atirei... era o rosto de meu pai...
— Ah, sim... compreendo. Isso... deve ter sido... difícil.
— Tsc, você não entende. Se não sabe o que dizer, não diga nada, seu pamonha. — E assim, ela enxugou suas lagrimas com o antebraço.
— Perdão, guria.
— Não tem problema, você ao menos me escutou. Diferente de seu mestre que me jogou aqui e nem olhou na minha cara.
Em relação as atitudes de meu mestre, eu não estava livre para opinar. Para alguém na categoria de shikigami, meu mestre era quase como uma existência divina, e qualquer comentário poderia ser visto como blasfêmia. Em um momento delicado como esse, a tática era sempre mudar de assunto.
— Você disse que atirou, não foi? Estava usando uma arma... arma de fogo?
— S-Sim. Eu peguei do taradinho. Foi para salvá-lo, aliás.
— Espera, está me dizendo que agiu para salvar aquele agente?
— É... sim...
— Ok, só pode ser febre, vou buscar os devidos medicamentos.
— Seu pamonha, não seja um cão bobo. Ele se colocou na minha frente. Nunca aceitaria que alguém lutasse minhas batalhas por mim, só isso.
— Bem, conhecendo você, guria, sei que isso é verídico. Mas, não está esquecendo de mencionar o fato de você gostar dele?
— De eu...? Hã?! Não! Não, não, não, eu não gosto dele. Ele é só um colega.
— Admita, Assassina de Youkais, você se apegou a um humano.
— Não me apeguei! Não me apeguei! — Ela começou a balançar as pernas, enquanto balançava a cabeça em negação. — Eu sou uma garota malvada! Não me apego a ninguém! Vou provar ao mundo minha maldade quando deixar um bigode crescer e abrir um partido dos trabalhadores!
— Não precisa dizer algo tão pesado!
— Hmph, — ela estufou as bochechas por um momento, colocando um ponto final no assunto.
— Por ora, deixarei passar, guria. Mas saiba que um pouco de humanidade fará bem a você.
— Tá, tá. — Ela ignorou meu conselho. — Ulim, a tela bloqueou, você poderia mexer no mouse.
— Hmm? — Olhei para trás, por cima de meu corpo, para o computador pessoal de Yuna. — Tudo bem.
Dei meia-volta e minhas quatro patas me moveram até a pequena oficina da guria. Meu focinho empurrou de leve o mouse. A imagem no monitor mudou, exibindo uma página da web. Ou para ser mais específico, era uma página da Deep Web. Um fórum de informações terroristas que estava sendo atualizado constantemente graças a um código de programação que a própria guria havia escrito.
— O que isso significa?
— O nome é internet...
— Sim, eu sei. Mas estou perguntando sobre esse fórum terrorista.
— Ah, isso. Bem, eu estava tentando descobrir a localização do Tengu, então...
— Espera, estava pensando em ir atrás dele, também?
— “Estava” não é a melhor palavra... — ela coçou a nuca, sem graça.
— Guria, está pensando em fugir novamente para ir atrás daquele youkai?
— Ué, achei que já estava óbvio.
— Yuna, não posso deixar. Vou avisar ao meu mestre...
Em resposta à minha ameaça, Yuna com sua vontade divina, apontou os olhos azuis para a porta e ela foi totalmente congelada.
— Guria, o que pensa que está fazendo?!
— Me escuta, Ulim, o Tetsu ter sido sequestrado é culpa minha. Se alguém deve salvá-lo, esse alguém sou eu, a Agente Hanyou!
— Você inventou esse nome agora!
— Metade humana, metade youkai, agente total. — Ela disse isso de uma maneira indescritivelmente dramática.
— Não, guria, a missão é minha. Eu o trarei de volta. Você continuará de castigo, sendo uma boa menina exibicionista.
— Eu vou com você. — Ela decidiu com uma mudança repentina de humor. Soltou o dakimakura na cama e se levantou, indo direto até seu guarda-roupa.
— Guria, não complique as coisas. Como pensa em sair comigo da AAA? As câmeras irão te ver e meu mestre irá te impedir.
Ela colocou uma calcinha vermelha, com as bordas brancas. Deslizou a peça intima por suas coxas, enquanto empinava o quadril, enfatizando a perfeita curva de seus glúteos. Ela me lançou um olhar inocente e confuso, como se quisesse saber o que eu estava pensando.
— O que é?
— Você faz essas coisas realmente consciente do que está fazendo?
— Então, você realmente estava me olhando. — Ela sorriu. — Acho que até mesmo um cachorro não consegue ignorar minha beleza natural.
— Eu só não consigo ignorar o tamanho do seu ego, só isso.
Yuna continuou se vestindo. Apanhou um sutiã também vermelho com bordas brancas, e o vestiu de uma maneira não tão sensual quanto a peça anterior. Ela ajeitou o sutiã, após vesti-lo, e apanhou os seios por baixo, fazendo-os saltitar duas vezes.
— Firmes. — Falou, satisfeita.
— Agora que já está apresentável, pode responder como pretende fugir desta vez?
— Do mesmo jeito que todas as outras vezes.
— Ah, claro... ei, como assim “todas as outras”?
— Eu tenho uma passagem secreta.
— O que?!
A guria apanhou outra peça de seu guarda-roupa e a puxou para fora. Era uma longa regata vermelha de basquete. Na parte da frente era possível se ler na cor branca Tóquio, e o numeral 23. Ela trajou aquele uniforme que cobria seu corpo como um vestido, e então se agachou, retirando do armário uma luva vermelha e um par de tênis brancos de cano médio.
Eu já a havia visto diversas vezes com aquele conjunto de roupa, só que, enquanto Yuna calçava seus tênis, algo passou por minha cabeça canina.
— Guria, sua roupa de baixo, é para combinar com o resto?
— Hã? — Ela corou. — C-Como percebeu?
— Você está toda de vermelho e branco, não tinha como não perceber.
— É que... caso eu precise usar 23° Tóquio na forma de lança, minha roupa de baixo continuaria em harmonia com minha luva e meus tênis.
— Isso é realmente necessário?
— Claro que é, seu pamonha. Ficará muito legal quando fizerem minhas action figures.
— Quebrou a quarta parede para dizer isso?!
Ela colocou sua luva na mão esquerda e sorriu graciosamente para mim, como forma de resposta.
— E aí, como estou?
— Do mesmo jeito de sempre.
— Ótimo, significa que estou um neném. Agora, Império das Pulgas, vamos ver o que meus parceiros terroristas estão comentando.
— O pior é que não soa tão errado vindo de você.
A guria se acomodou na cadeira e com uma leve remada a aproximou mais um pouco da mesa de seu computador pessoal. Seus dedos foram para o teclado e ela começou a digitar naquele fórum do poço da internet.
Movido pela curiosidade, deitei meu focinho próximo ao monitor e comecei a observar todas aquelas telas e informações se atualizando de momento a momento. E então, reparei...
— Floquinho de Neve? Esse é o seu nome falso?
— É a coisa mais fofa, não é?
— Eles ao menos sabem que você é de verdade?
— Claro que sabem, eu posto algumas fotos de biquíni, às vezes.
— Você não tem biquíni, guria.
— Ops... então será que eu estava nua?
— Como assim?!
— É brincadeira, Ulim. — Sua mão esquerda veio à minha cabeça e seus dedos começaram a me massagear. — Eu nunca cheguei a mostrar meu rosto. No máximo, minha boquinha. A ideia sempre foi chamar a atenção dos homens sujos no mercado negro, e com esse corpinho que você observou em detalhes, momentos atrás, é ridiculamente fácil. Criei uma conta falsa, postei algumas fotos e logo as pessoas começaram a se aproximar. Os mais espertos se mantiveram só como amigos, já os imbecis nojentos marcaram encontros comigo.
— E você foi?
— Claro. E lá eu os matei.
Nunca me senti tão aliviado durante toda minha vida canina.
— Fico feliz em saber que minha colega de trabalho não é uma doente.
— Bem, até a segunda página...
— Como?!
— Você sabe. Eu tenho hibristofilia. Por que acha que me relacionei com Tetsu. Só alguém com hibristofilia daria bola para aquele babaca.
— Guria, tenha modos. Lembre-se de que você está querendo fugir justamente para salvá-lo. Sabe, é como dizem, não se cospe no prato que se come.
— Exatamente. Por isso eu vou salvá-lo, e vou esfregar na cara dele sua dependência de mim. Sabe, é como dizem, quem ri por último, ri melhor.
Bem, no final, Yuna não perde sua essência. Ela sempre envolveu seu ego gigantesco em suas relações pessoais e também em suas decisões que provém de seu lado sentimental. O resgate do Assassino Intocável, para ela, era só uma forma de mostrar sua independência e enfatizar seu orgulho gélido.
— Aí, chegou algo interessante. — A guria mexeu no mouse e fez coisas que minha mente canina, mesmo que misticamente aprimorada, não conseguia compreender.
O importante é que ela selecionou uma frase.
— Há uma casa abandonada, que originalmente está à venda faz bastante tempo. — Leu ela. — Isso não tem nada demais. O intrigante é que desde o final da tarde uma presença aparecia e sumia, aparecia e sumia. Não sei ao certo o que é, mas parece ser um homem. Pode ser um dos carrascos da Mythpool, então, tomem cuidado. A residência fica bem próximo da divisa de Saitama com Tóquio.
— É recente? — Perguntei.
— Sim, tem dois minutos. Só pode ser o Tengu. O usuário é anônimo, então a informação deve ser válida. — Ela se levantou da cadeira e começou a alongar os braços. — É nossa única pista.
— Guria, vejo que está empenhada e cheia de energia, mas, como disse, a missão é minha. Eu vou pedir autorização ao meu mestre e partirei para checar esse local...
— Seu pamonha, não temos tempo, não. Se formos pelo lado burocrático, não vamos conseguir chegar rápido.
— Você realmente acha que irá comigo...
— Ulim, deixa de ser pé no saco! Se não quiser ir comigo, eu irei sozinha!
— Boa sorte, — e virei as costas para sair do cômodo pessoal da Assassina de Youkais.
— Boa sorte para você também, quando quiser comer aqueles suculentos pedaços de carne branca que você tanto ama.
E assim, a guria retomou minha atenção.
Aqueles pedaços de carne branca, era ela quem importava direto do mercado negro. Era um de nossos vários segredos, já que meu mestre só me fazia comer umas rações esquisitas com gosto de comida de passarinho. E, sendo ela quem me fornecia meu alimento digno, sua última fala significava...
— Você não ousaria, Yuna Nate, — rosnei.
— Olha só, me chamou pelo nome completo. Parece que você se sentiu ameaçado com o que eu disse, Império das Pulgas.
— Guria, não faria isso, não é?
— Quer testar os limites de minha paciência, meu neném?
Embora a frase pareça, de algum modo, carinhosa, Yuna disse com um tom tão gélido quanto seus poderes, e com seu par de safiras me encarando desafiador.
Instintivamente, parei de rosnar e me mantive alerta. Não que a guria fosse me atacar, mas meu cérebro se atentou como se fosse.
Por fim, me rendi àqueles olhos azul-escuros.
— Está bem! Que droga! Nós vamos juntos, mas só faremos uma breve visita. Ou seja, caso o Tengu ou o Tetsu não estiverem lá, vamos voltar.
— Certo. Palavra de escoteira.
— Você não é escoteira.
— Mesmo assim, pode confiar em mim, Ulim. Sua querida kouhai nunca iria te desapontar.
— Hmph, isso já aconteceu logo quando entrei neste quarto.
+++
Antes de minhas patas me colocarem para fora do recanto da Assassina de Youkais, ela me disse para aguardá-la na garagem da Associação. Porém, quando cheguei lá, a guria já estava à espreita. A garagem estava com suas luzes apagas e a única câmera estava com sua lente congelada. O cheiro da garota vinha de um canto à esquerda do local. E mesmo estando escuro, eu conseguia visualizar tranquilamente seu corpo jovem de vermelho.
Ela estava sentada graciosamente sobre uma pilha de caixas com nada de útil dentro.
— Vamos, guria. Logo irão notar a lente congelada dessa câmera.
— Nada disso.
— Como é?
— Primeiro vou fazer uma customização em você, seu pamonha.
— É... que tipo de customização...?
Yuna não esclareceu minha dúvida de primeiro momento, o que me deixou de certa forma mais preocupado. Então, ela desceu da pilha de caixas, se deixando levar pela gravidade, e após bater a poeira do uniforme, ela caminhou para o outro lado da garagem, mantendo o olhar baixo à procura de algo.
Meus instintos caninos não estavam gostando daquilo.
Algo desagradável estava por vir.
— Aqui. — A guria agachou e logo depois ergueu o braço, segurando o que parecia ser um farol de motocicleta. — Ué, onde eu deixei o outro? — Ainda agachada, ela virou o corpo, enquanto movia a cabeça de um lado para o outro.
Aquela cena deveria ser fofa. Lembrava um esquilo à procura de uma noz. Todavia, com aquela lâmpada em uma das mãos, eu só conseguia processar aquela imagem como a cena de um filme gore de terror psicológico.
Eu era a vítima do longa-metragem.
Yuna, a torturadora.
Tive certeza dessa minha analogia quando a guria encontrou outro farol de motocicleta.
Ela se levantou.
Ela se aproximou.
— O que pensa que vai fazer?
— Vou colocar essas lâmpadas neon em você. Assim, quando você correr, os rastros de luz ficarão no ar, igual em Akira.
— Quer colocar essas coisas em mim porque assistiu a uma animação dos anos oitenta?!
— Exatamente. Você é um cãozinho muito esperto, sabia? Agora, fique quieto, está bem?
Para ser honesto, eu pensei em fugir dali e abortar a missão, mas acho que ter um par de lâmpadas neon acopladas nas coxas por uma noite, não era verdadeiramente algo insuportável, considerando que negar aquilo e abortar a missão, me faria ficar sem comer carne por um bom tempo. Fora que, se as fontes que julgo serem não seguras da guria, estiverem corretas, aquela saidinha seria uma oportunidade única.
— Pronto. — Yuna bateu as mãos. — Só falta meu assento improvisado.
— Como é?! Tem mais?!
— Claro, seu pamonha. Acha que vou me sentar em suas costas duras e fortes, à seco?
— Você sempre fez assim.
— Mas desta vez é diferente, Ulim. Eu fiz um assento bem caseiro, não se preocupe.
— Isso é o que mais me preocupa.
E novamente, a guria começou a vasculhar os cantos da garagem na escuridão. Não teve o trabalho de se agachar, dessa vez. Ficava somente inclinando o tronco e apoiando as mãos no joelho. Até que...
— Encontrei, encontrei. — Ela apanhou o objeto, ajeitou a postura e se virou para mim. — Veja, não é legal?
O que foi exibido diante de meus olhos caninos era, em suma, uma almofada presa em um cinto. Parecia um anel. O cinto formava um círculo, e a almofada ficava por cima, como uma joia.
Eu mereço? Foi o que me questionei.
A guria colocou seu assento que envolveu meu corpo como um relógio envolve um pulso. Satisfeita, ela posicionou suas mãos na cintura.
— O veículo dos meus sonhos.
— Veículo?
Ignorando meu comentário, ela finalmente montou em minhas costas.
— Está perfeito. Enfim, podemos partir. — Em ambas de suas mãos, lâminas curtas de gelo surgiram com um brilho azul, e no instante seguinte as gêmeas foram lançadas contra as cordas de aço que manipulavam a porta da garagem. Assim que cortadas pelas armas no estado sólido da água, a saída se abriu com força.
O barulho ecoou na Associação adentro.
Era o meu ponto sem volta.
Aquele som retumbante cantarolou sobre nossa fuga.
E, àquela situação, a única coisa que pude fazer foi disparar como um relâmpago para fora da AAA.
+++
Para evitar perca de tempo, tomei a liberdade de avançar na história, descartando a parte em que Yuna e eu nos perdemos no caminho de nosso objetivo. Em redução ao que ocorreu, a guria se esqueceu onde exatamente se localizava a residência abandonada e nem ao menos teve o capricho de fazer algum tipo de anotação. Como resultado, nós acabamos rodando pela divisa da cidade até que enfim chegamos no local.
Era uma região um pouco afastada da civilização.
Chegava a ser engraçado que uma residência daquelas ainda estivesse ali, mesmo que abandonada.
Enfim, não estávamos ali para fazer julgamentos.
Saltei o muro que cercava o terreno e invadimos o lugar.
Um pouco depois de tocar minhas patas no quintal, eu farejei o ar, para tentar descobrir o que se passava naquela casa abandonada.
— É algum deles? — Yuna perguntou, em um tom soturno.
— Nem o cheiro do Tetsu, nem o cheiro do Tengu.
— Tsc, aquele fórum já foi mais verossímil.
— Bem, a culpa não é de seu informante. Além do mais, é provável que o Tengu tenha utilizado algum tipo de feitiço nele e no Tetsu, para despistar meu olfato apurado. Desde que iniciei esta busca, não consegui rastrear seus cheiros corretamente, e diversas vezes fui feito de bobo.
— É uma história deveras triste, Ulim. Porém, neste pequeno raio de distância em que estamos da solitária residência, acha que seu faro falharia?
— É possível.
— Sei... mas, sendo assim, por que ainda estamos aqui e por que você está tão alerta, Império das Pulgas?
— Há um cheiro muito esquisito vindo daí de dentro. É forte, mas não consigo compará-lo com nada. É um aroma totalmente novo para mim.
— Hmm, será que é algum novo perfume, seu pamonha?
— Não é uma fragrância artificial, guria. É um odor natural. Ao menos disso tenho certeza. É refrescante, atraente e intimidador.
— Vem cá, não está sentindo o meu cheiro, não?
— Não, guria, seu cheiro é algo mais doce e terapêutico, eu nunca o confundiria.
— Isso foi muito fofo, meu neném. Que bonitinho, que coisinha mais linda da Yuna...
— Pare de falar com essa voz que deixa tudo constrangedor!
E ela parou.
Acho que elevei um pouco o tom de meu latido.
O que até o momento era uma casa silenciosa, acabou deixando sua timidez de lado, e nós começamos a escutar passos vindo de seu interior. Não demorou para os passos chegarem até a porta de madeira.
Àquilo, meus caninos não conseguiram ficar escondidos em minha boca, e se destacaram entre o resto de meus dentes. Em minhas costas, a guria também não se manteve de guarda baixa. Ela fez surgir uma lança de gelo em uma de suas mãos, e ficou disposta para o combate.
Eis que a porta foi aberta, empurrada com tranquilidade, deslizando para o lado.
— Oi, eu...
Não sou capaz de dizer corretamente o momento em que Yuna arremessou sua lança contra aquele que se apresentou brotando da penumbra residencial. O que meus olhos caninos conseguiram observar, foi que o ataque da guria não foi tão preciso como era costumeiro. Na realidade, não era nem ao menos uma ofensiva para matar o meliante. Foi um movimento surpresa para atrasar e prevenir qualquer tentativa de avançar da parte rival. Se bem que, “surpresa” é uma palavra que pode ser retirada da última frase.
Com precisão suficiente para apanhar uma mosca, aquele que estava na entrada da casa abandonada, apanhou com uma mão a haste gélida da arma em voo, que iria passar zunindo por cima de seu ombro oposto.
— Vocês não são do FBI, não é?
Nós não respondemos.
A figura do homem à nossa frente era extremamente comum. Ao mesmo tempo, era um tanto peculiar. Afinal, para alguém que apanha uma das lanças da guria com tamanha facilidade, não se espera que seja um indivíduo trajando um short moletom e uma blusa listrada em cinza e verde.
— Tsc, quem é você? — Por fim, Yuna solta sua questão.
— Infelizmente, mocinha, antes de dizer quem sou, preciso confirmar quem você é. — E ele jogou a lança para o lado. — Eu estou aqui em serviço da paz e acho desnecessário partirmos para violência, não pensa igual?
— Eu não costumo deixar de pé os obstáculos que surgem à minha frente. E também não estou gostando desse papo de “confirmar” quem sou. Se você tem alguma ideia da minha caminhada, pode apostar que sou quem pensa que sou. Caso esta confirmação visual não seja o suficiente, não sou eu quem irá dizer meu nome.
A guria disse aquilo de uma forma que a fez parecer uma verdadeira lenda mitológica, invocada no mundo moderno para participar de um battle royal, à preço de que o vencedor possa fazer qualquer desejo a um cálice sagrado.
— É... partindo do seu pensamento, mocinha, eu só consigo deduzir que você é a entregadora da pizza que pedi para entregarem neste endereço há alguns minutos.
Àquela resposta imprevisível, senti o corpo de Yuna relaxar sobre minhas costas.
— Ah... é... eu não sou entregadora de pizza, seu pamonha.
— É um alívio ouvir isso. Ficaria bastante chocado se minha pizza chegasse em cima de um lobo.
— As pizzarias ainda não optaram por esse tipo de entrega rápida — comentei.
— Ei, não seja rude com meu neném, está bem? E não tente desconversar falando sobre pizza. Se não me dizer quem é, não há motivos para mantê-lo vivo. Prometo que a próxima lança será indefensável.
— Quanto a isso, acho que já deixei claro meu pensamento. Preciso que me confirme quem você é, e assim, poderei dizer quem sou.
Então, lati.
Era eu quem estava começando a perder a paciência.
Contudo, a maneira com que Yuna lidava com determinadas situações, era um pouco mais física do que verbal. Dessa forma, não pude fazer nada quando a guria desceu de minhas costas e, com passos firmes e sem receios, se aproximou da figura misteriosa.
— ...
E ela o agarrou pela gola de sua blusa.
— Escuta aqui, seu pamonha, especialmente hoje estou...
— Caramba, é você mesmo... tão bonita...
— Hã?
Com aquilo, o homem puxou o tapete do discurso de Yuna. Ela soltou sua gola e deu dois passos longos para trás, antes de abraçar os próprios seios. Seu olhar que era de irritação, se tornou um invólucro de repulsa.
— Você é mais bonita do que os boatos dizem, Cavaleira de Cristal.
— Cavaleira...? Francamente, que tipo de pedófilo você é, hein?
— E-Eu? Eu não sou um pedófilo. Sou um detetive.
— Não me convenceu.
— Bem, agora que confirmei quem você é, minha Cavaleira, não tenho mais porquê esconder minha identidade.
— Hmph. — A guria largou o peito e posicionou suas mãos na cintura. — Então nos diga, taradinho, quem é você, afinal?