Capítulos (3 de 23) 02 May, 2020
Red: 003
O nome da figura era Doz. Detetive Doz, foi como ele se apresentou. Um nome claramente estrangeiro, assim como sua aparência física. Se posso deixar meu palpite como um experiente líder de alcateia, julgando por sua feição, eu diria que é alguém cuja origem é algum país do centro europeu. Ele tinha a aura de um rei, mas suas vestimentas, olhar e atitudes, disfarçava-a ao máximo. Parecia quase algo proposital. Ele parecia estar encarnado em um personagem, e isso não me cheirava bem.
Claro, é só um ponto de vista meu.
Ou um ponto de olfato.
O importante é que ele finalmente revelou seu nome e conseguiu convencer a Assassina de Youkais a não agir como uma assassina contra ele.
Após ele dizer quem era, o detetive apresentou seus documentos para a guria.
— Mythpool, agente sênior. Você trabalha para eles, é? Hmph, não me surpreende ser um taradinho. Ei... o que é isso? É um cartão de fidelidade de um bar noturno em Kabukicho...
E o detetive tomou a carteira da mão dela.
— Não é nada, foi só uma missão... acabei guardando...
— Imagino, imagino. A missão de apertar peitos por um preço acessível.
— ... — o detetive desviou o olhar.
Enfim.
Independentemente dos gostos do homem que havia se revelado, ele tinha provado não ser um completo omisso, embora ainda um estranho. E, nesse caminho, o próximo passo seria descobrir o que aquele agente estava fazendo ali.
Claro, a guria já tinha se antecipado a isso.
Nós fomos convidados a adentrar a casa abandonada, e estávamos todos acomodados quando ela começou.
— Então, detetive, não querendo ser clichê, mas o que lhe trouxe até aqui?
— Hmm? Eu... bem, são duas coisas. A primeira é que estou investigando as ações de um grupo magos. Isso já faz um tempo, para ser honesto. Eu estava em Londres há duas semanas. Aparentemente é lá que fica o QG deles.
— E o que um grupo de magos tem a ver com esta casa?
— Ah, eu ouvi botados de que um homem estava aqui, sumindo e desaparecendo. Achei que seria um dos youkais que os magos ressuscitaram, mas quando cheguei aqui, não encontrei nada.
— Um youkai...? Por acaso está atrás do Tengu?
— Não necessariamente do Tengu. Só estou atrás de pistas que me levem até os magos. Algumas horas atrás, um mascarado surgiu em Quioto, atrás de uma hanyou com mais ou menos treze anos de idade. Uma colega minha, Suny, ficou com o caso. Não sei exatamente o que se sucedeu, mas pelo pouco de informação que recebi, ela não conseguiu pegar o misterioso e acabou sofrendo um ferimento na cabeça.
— Suny é...?
— Você a conhece?
— Conheço. Já trocamos algumas palavras.
Por que meu instinto canino diz que a guria não se dava muito bem com essa Suny?
— Bem, isso não vem ao caso, agora — continuou ela. — Só gostaria de saber a relação desse mascarado com o que você veio fazer aqui, seu pamonha.
— Isso é simples, mocinha. O mascarado é o cara que some e aparece.
À resposta do detetive, Yuna piscou seus olhos azuis, indicando que seus neurônios estavam disparando a todo vapor, enquanto ela processava a informação.
— Espera, o Tengu não usa máscara, seu pamonha. Você tem a descrição física dele ou um retrato falado?
— Infelizmente, não. Somente recebi essa informação bem superficial. Se Suny sofreu um ferimento grave, talvez ela esteja inconsciente, então não pode relatar nada em detalhes a ninguém.
— Hmm... claro. Desse jeito, é esperar para ver.
— Sim. Até porque, talvez esse mascarado não tenha relação com o NIP.
— NIP? — E a guria estreitou o olhar. — Esse é o nome do grupo de magos?
— É... a sigla, na verdade. — Respondeu o detetive, que por um momento ficou desconfortável com o brilho investigativo nos olhos de Yuna.
— Sigla, é?
— Você já ouviu falar, guria? — Perguntei, tentando decifrar o que havia por trás de seu par de safiras.
— Já sim. E não faz muito tempo. Parando para pensar, é até bastante óbvio. O Tengu foi ressuscitado junto do Obake e estavam juntos para conseguir o escudo Kagami.
— Então, já sabe do escudo, — disse o detetive.
— Sim... — ela desviou o olhar. — Parte dele ter sido roubado... é culpa minha...
— Culpa sua? O que quer dizer com isso, mocinha?
— Quero dizer que poderia ter impedido. Não é como se eu me importasse, mas o roubo do Kagami acabou causando um problema que não quero assumir a responsabilidade. Por isso, estou aqui, afinal.
— Guria...
— É melhor irmos, Ulim. — Ela me interrompeu e se voltou para mim. — Não temos tempo para perder. No final, esse local pode até não ter sido um alarme falso, mas se o Tengu esteve aqui, com certeza já se foi.
— Perdão, mas o que exatamente vocês procuram?
— Hã, por que do interesse, seu pamonha?
O detetive não deu sua resposta de imediato. Quando a guria lançou sua pergunta, o agente misterioso estava levando sua mão para o bolso de sua blusa. Ele retirou uma barra de chocolate comida pela metade e a moveu até sua boca.
Uma mordida precisa separou dois quadriculados para dentro de sua cavidade oral.
— Quer? — Ele ofereceu.
— Obrigada, mas pretendo continuar sendo material de fan service.
— Que isso. Um pedaço não vai acabar com esse seu corpinho de angelical.
— Não seja tão pedófilo, está bem? Oferecer doces para uma menor de idade é uma tática manjada em diversos países. Não funciona mais, seu pamonha.
— N-Não era essa minha intenção... — ele recolheu sua barra de chocolate, guardando-a de volta no bolso.
— Verdade, guria, acho que ele só quis ser educado.
— Hmph, Império das Pulgas, o que você sabe sobre pedófilos? Eu conheço muito bem as táticas desses tarados por garotas com rostinhos como o meu. Se ele me ofereceu um pedaço de chocolate, o próximo passo seria me ofereceu um pedaço de pirulito.
Um duplo sentido desses?!
Nos pegou de surpresa.
— De qualquer forma, eu não sou chegada em chocolate.
— Você poderia ter dito isso desde o começo!
— Pois é, mas não disse. O que seria de mim sem acusar os homens de pedofilia, hein? E também, no meu caso, não é como se eu estivesse mentindo. Que homem não sentiria desejo por alguém como eu. É da minha natureza como hanyou ser incrivelmente atraente. Vejam, eu sou uma japonesa de olhos azuis, e são naturais.
Analisando os fatos, ela estava correta. Yuna é filha da youkai Yuki-onna, a Mulher da Neve, cuja aparência encantadora atraí os homens perdidos no mais terrível inverno, e os olhos azuis têm o mesmo efeito que o canto de uma sereia.
Claramente, a guria herdou os dotes de sua mãe.
A guria também a matou, mas creio que não seja nenhuma informação nova.
— Você é realmente um colírio para os olhos, a ponto de fazer um garoto desistir do suicídio só por ter trocados algumas palavras com você. Porém, acho que deve medir melhor o tamanho do seu ego.
— Tsc, só falei verdades. E outra, não fique fazendo referência a um conto meu não publicado, seu pamonha.
— Tudo bem, peço perdão, minha Cavaleira. Mas agora, poderíamos voltar ao assunto principal? O que exatamente vocês procuram?
— Esse negócio de “Cavaleira” de novo? — Ela ignorou o retorno ao foco. — Não sei o que ouviu falar de mim, mas eu não sirvo a uma deusa grega e nem saio correndo por uma escadaria dividida por doze casas.
— Ah, isso, é um apelido. É assim que você é conhecida de onde eu venho.
— Hmm, estou começando a ficar incomodada com a fama — comentou ela. — Mas que seja. Você tinha me perguntado o que estamos procurando e eu perguntei o porquê de seu interesse. Estou esperando sua resposta.
— Se quer mesmo saber, é porque sou a melhor pessoa para ajudá-los em seu caso. O que estou propondo é unirmos forças.
— Isso não faz sentido, seu pamonha, você ainda não sabe o que estamos procurando. Não pode alegar que é a melhor pessoa sem antes saber o caso.
— Errado, mocinha. Podemos dizer que temos muito em comum.
— Você não é bonito e não parece ser inteligente.
— E-Eu não estava dizendo nesse sentido. O que quero dizer é que também tenho o ego inflado.
— Não entendo. Acha que por ter o ego inflado, pode se unir a mim e ao meu neném para nos ajudar a conseguir nosso objetivo, é isso?
— Basicamente, sim. Eu sei que sou o único que pode lhe ajudar, minha Cavaleira, Yuna Nate.
Mesmo a missão principal sendo minha, eu estava sobrando um pouco naquela residência. A conversa começou e de repente se tornou algo sobre a guria. Ela não gostou nem um pouco quando o detetive pronunciou seu nome após “minha Cavaleira”, e isso ficou explicito em seu olhar.
— Escuta, não temos tempo para brincadeiras. Se não tem nada a dizer, nós vamos indo.
Sem mais delongas, a guria virou as costas para o homem e começou a caminhar em direção à saída. Eu não demorei a fazer o mesmo, dando dois passos mais rápidos para alcançar Yuna.
— Não negue que precisa de mim, minha Cavaleira. Você está dependente disso.
— Dependente, é?
Os calcanhares da guria deslizaram, a virando em uma velocidade espantosa. Mais veloz do que sua virada súbita, foi sua investida contra o detetive que cometeu o erro de provocar a Assassina de Youkais. Contudo, entre um momento e outro, meu olfato detectou uma mudança gritante e crucial no odor daquele homem. O que era antes um cheiro peculiar, porém humano, se tornou algo incompreensível e inumano.
Era difícil dizer se aquilo realmente era um odor.
No segundo seguinte em que me virei, o detetive erguia minha kouhai a agarrando com uma mão pelo pescoço.
Meu cérebro não teve tempo de me fazer agir. Assim que meus olhos caninos encontraram aquela imagem, logo em seguida, a guria tomou uma atitude que já havia sido avisada. Em sua mão surgiu uma lança de gelo e seu braço se moveu em um piscar de olhos, fazendo a arma gélida atravessar o pescoço do Detetive Doz.
Mesmo assim, o homem não esboçou nenhuma reação.
Não soltou Yuna e também não sofreu com a dor.
Talvez nem tenha sentido o golpe, o que era assombroso.
O ponto onde a guria atravessou sua lança de gelo foi pensado para desconectar as vértebras torácicas das cervicais. Mesmo que não sentisse dor ou até se fosse imortal, sendo golpeado naquele local em específico, o detetive não poderia mais estar segurando Yuna daquela forma. Ela o acertou ali, justamente para se libertar da mão daquele homem, mas lá estava ele, a agarrando firme e forte.
Embora o ato fosse assassino, a expressão do detetive era serena.
Aquilo deve ter irritado de vez a Assassina de Youkais. Por toda aquela residência, a temperatura caiu drasticamente. A guria estava perdendo o controle, era o que aparentava, e isso poderia ser ruim para tudo que estivesse ao seu redor. No entanto, ainda em sã consciência, Yuna dobrou os joelhos e com os dois pés acertou o tórax do detetive com tremenda força. O impacto o fez soltá-la e a pressão o deslizar para trás.
A guria capotou no solo, mas logo fixou os pés no chão.
— Realmente, é como reza sua lenda, — disse Doz. A lança que ficou atravessada em seu pescoço, se desfez. O ferimento se regenerou no instante seguinte. — Esse chute doeu, hein. O que suas pernas têm de bonitas, elas têm de fortes.
— Não me venha com esse papo de pedófilo, seu pamonha. — Ela ergueu o corpo. — Você comprou uma briga que não pode vencer.
— Não foi eu. Pelo o que vejo, eu sou a vítima aqui. Eu disse que estou à serviço da paz e que acho a violência desnecessária, não disse? Foi você quem me atacou enquanto estava te oferecendo ajuda. A moral da história para você, é que deveria ser menos explosiva e escutar mais.
— Tsc...
— E também, espero que já tenha entendido que não vai adiantar de nada tentar me matar, mocinha.
— Quer apostar, seu pamonha? Não será a primeira vez que dou fim a...
— Guria, não. — Eu segurei com meus dentes a barra do uniforme dela e puxei delicadamente para fazê-la recuar.
Ela me olhou por cima do ombro.
— Não me segura, Império das Pulgas, deixe eu colocar um colorido naquela face.
E eu soltei o 23° Tóquio. Não para deixá-la liberta para enfrentar aquele detetive. O real motivo era porque precisava latir algumas coisas.
— Escuta, guria, ele não é comum. O cheiro dele é irreconhecível.
— Eu sei, seu pamonha.
— Não, não sabe. Se acontecer algo com você em minha missão...
— Hmph, então é tudo sobre sua reputação para com seu mestre, não é?
— Não é isso, estou tentando lhe proteger. Somos uma dupla.
— ... — ela cerrou os punhos, mais por indecisão do que por raiva.
— Se ele está oferecendo ajuda, ao menos escute o que ele tem a dizer, guria.
E seus punhos continuavam fechados e firmes como uma rocha, estremecendo com a cólera. Com o efeito de minhas últimas palavras, suas mãos se abriram e os ombros baixaram. Yuna desviou o olhar no escuro da casa abandonada.
— Droga, me ganhou com “somos uma dupla”, cachorro idiota.
Como a mesma disse uma vez, ela gosta de cachorros. E eu não poderia deixar de lado a vantagem que tenho como canis, para convencer a Assassina de Youkais a ignorar seu lado homicida por um breve período de tempo.
Desse modo, Yuna voltou a pregar seu olhar frio contra o detetive misterioso. Seus braços se cruzaram com placidez e ela relaxou o quadril.
— Você tem dois minutos, seu pamonha.
— Só dois. É muito pouco...
— Pois é, mas já estou contando.
— Tudo bem, tudo bem... deixe-me ver... ok. Durante os últimos meses eu andei observando você, Assassina de Youkais, e notei seu grandioso potencial. Você não só é uma estrategista natural como também uma ótima lutadora, e isso sem contar seus poderes de gelo.
— E desde quando exatamente você me stalkeia?
— Desde que foi catalogada na Mythpool, claro. Você é um espécime muito interessante. A forma como você se preparou para enfrentar sua mãe e anulou seu maior trunfo, foi...
— Sem conversa fiada, direto ao ponto.
— Desculpe, é que eu me apego aos detalhes. Enfim. Depois de muita observação, eu me senti disposto a encontrá-la pessoalmente. Por sorte, parece que esse encontro nos foi entregue pelas mãos dos deuses mais benevolentes.
— Benevolentes só para você, seu pamonha. Com certeza eu não queria estar tendo esta conversa. E você ainda não disse o que quer comigo.
— Vou chegar nessa parte, agora. Eu tenho uma proposta para lhe fazer, minha Cavaleira. Estou formando um...
— Bem, seu tempo acabou.
— Quê?
— Seus dois minutos se passaram. Não temos mais nada para conversar.
— Mas eu achei que fosse dois minutos metafóricos.
— O que são dois minutos metafóricos, seu pamonha? — Os braços da guria se separaram, e sua mão direita foi para sua cintura, enquanto a esquerda se estendeu na direção do detetive com a palma aberta para cima. — Se quiser conversar por mais um minuto, terá de fazer um pequeno pagamento à vista.
— Sério isso?
— Muito sério, seu pamonha. Poderá continuar o que estava dizendo pela pequena bagatela de trezentos ienes.
— Tudo isso?!
— Exatamente. Suponho não ser muito para quem tem um cartão de fidelidade em um lugar onde pode-se apertar peitos enquanto toma um gracioso café. Então pode abrir a carteira, taradinho. São quatrocentos ienes.
— Espera, aumentou?!
— Os juros são meio instáveis na minha agência. Se demorar mais, pode ser que suba mais cem ienes, saindo por seiscentos.
— Então já subiu para quinhentos?!
Sem perder mais tempo e com medo do constante aumento de juros, o detetive pagou à guria com quinhentos e cinquenta ienes. O cinquenta a mais foi pelo tempo que ele demorou para caminhar até ela.
Yuna analisou a veracidade das notas com muita atenção. Satisfeita com as cédulas não falsificadas, a guria puxou a gola da regata e mergulhou o dinheiro nos seios.
— Ótimo, com isso você ganhou mais dois minutos.
— Certo. Como eu ia dizendo, estou formando um time.
— Olha, eu não jogo basquete, é só meu uniforme que tem o mesmo modelo.
— Não, não é um time de basquete. É um outro tipo de time. Acho que o melhor termo seria equipe, e não time.
— Não é como se tivesse muita diferença — comentei.
— A iniciativa para essa equipe é reunir um número de personalidades peculiares para que possam trabalharem juntos em casos de ameaças gigantescas contra a humanidade.
— Entendi, entendi, seu pamonha. Você quer plagiar Os Vingadores.
— Não, não é isso!
— É o que me parece.
— Mas não é! Minha ideia não tem nenhuma relação com uma equipe de história em quadrinhos.
— Seu tempo, taradinho.
— Hã? Ah, sim. Bem, eu gostaria de saber se você quer participar...
— Me recuso.
A rejeição foi fria e imediata. Para o detetive, foi como se seu mundo fosse estilhaçado em pedaços de vidros. Até mesmo para mim, que já estava deitado à espera do final de todo aquele diálogo, a recusa da guria foi impactante.
Claro, os efeitos não surtiriam em um líder de alcateia como eu.
— O que você quer é montar uma equipe de justiceiros, mas isso não tem nada a ver comigo. — Ela prosseguiu. — Eu sou uma assassina, seu pamonha. Sou a Assassina de Youkais e meu único objetivo é matar youkais. Esses uns e outros que tirei a vida até hoje, são só infelizes que se colocaram infelizmente em meu caminho, somente isso. Eu não aceitaria, mesmo se eu fosse a pessoa que você está procurando, algo que com certeza não sou.
— Hmm... vendo dessa maneira, até que faz sentido. Mas você, minha Cavaleira, é formidável e...
— Seu tempo acabou.
— Mas, espere...
— Não temos mais nada para conversar. O que mais me irritou nesta conversa foi que você me ofereceu ajuda, mas disse coisas totalmente contrárias a isso.
Com isso, a guria parecia ter colocado um ponto final na conversação. Espreguicei meu corpo canino antes de me equilibrar novamente sobre minhas quatro patas e acabei bocejando.
A guria girou os calcanhares, virando as costas para o Detetive Doz.
— Vamos, Ulim. — Ela acariciou minha cabeça e pescoço, antes de montar de volta em minhas costas.
— Está certa disto, guria?
— Claro, seu pamonha. Vamos voltar para a AAA e pesquisar melhor...
— Perdão... — o detetive nos interrompeu. — Sei que meus minutos acabaram, mas quero que fique com isto.
Nossa atenção não estava voltada ao detetive no início de sua fala, então, quando nossos olhos apontaram para ele, foi bastante surpreendente vê-lo com uma belíssima lança de ouro em suas mãos.
Uma bela lança de ouro. Era algo cuja beleza brilhante ofuscava toda graciosidade da guria em minhas costas. Mesmo sua beleza tendo um efeito encantador, a presença daquela arma dourada praticamente anulava sua existência daquela casa abandonada. E isso não era diferente para mim e para Doz. O artefato era uma presença superior a nós três.
— Era sobre isso minha ajuda, mocinha.
Por poucos instantes, a guria ficou sem palavras. Não como se ela não tivesse nada a dizer, mas como se não conseguisse unir as silabas para formar uma palavra. Eu até poderia apostar que ela tivesse se apaixonado pelo objeto, só que ela foi treinada para que um distúrbio psicológico desses, não aconteça.
— Se está tão impressionada pegue logo e sinta o ouro nórdico em suas próprias mãos — ofereceu o detetive. — Afinal, esta lança já é sua, é só chamá-la que ela responderá. Não importa o quão longe ou o número de obstáculos, ela fará de tudo para chegar até suas mãos. Seu nome é Gungnir.
— Gungnir... — ela repetiu o nome da lança quase em um murmúrio, e com água na boca, como se tivesse um desejo sórdido pelo artefato. Porém, no segundo seguinte... — Puff... sério? Você gosta mesmo desse negócio de super-herói, não é?
— Como é?
— Isso, super-herói. Francamente, seu pamonha, não sei de onde você tirou essa lança, mas tentar vendê-la para mim dizendo essas coisas que só se vê em filmes do Thor, não vai rolar. E outra, eu sei muito bem que a lança Gungnir é uma relíquia mitológica perdida no espaço e que não pode ser manejada por mãos humanas. Ou seja, essa aí não pode ser a verdadeira Gungnir.
Será? Com base nos alertas de meus sentidos aguçados, posso dizer que esse homem que se diz detetive, não é humano. Como não podia afirmar nada, decidi deixar isso de lado.
— Você está certa, está certa. Mas, acredite, esta é a verdadeira lança Gungnir. É a arma que um dia foi usada em batalha pelo Pai de Todos, Odin.
— Hmph, duvido.
— Chame-a e saberá.
— Não chamarei.
— Quê? Por quê? Ela é sua, chame-a.
— Não quero chamá-la — e ela fez beiço.
— Ei, não me faça uma expressão tão fofa no meio de uma discussão, mocinha. E se eu acabar gerando sentimentos por você?
— Hã? — E seu beiço se desfez. — Jamais gostaria que um pedófilo stalker com fetiche em Cosplay tivesse algum sentimento por mim.
— De onde você tirou essa de fetiche?!
— Ué, está escrito na sua testa, seu pamonha.
— Está?!
— Brincadeira.
— Não brinque com esse tipo de coisa!
Ao ataque de desespero do detetive, a expressão de satisfação da guria era inegável.
— Escuta, Detetive Doz — ela chamou. — Eu estou com um pouco de pressa no momento, entende? Eu meio que fugi de casa para termos este encontro desagradável. E agora que já realizou seu sonho de criança ao me conhecer, será que podemos ir?
— Hmph, já vi que não terá jeito — o detetive baixou os ombros e também a lança. — Você venceu, minha Cavaleira, pode sair por aquela porta. Mas não se esqueça, caso precise de sua lança, é só chamá-la. Ela não hesitara em responder.
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No final, deixamos o detetive misterioso falando sozinho. Saltei o muro da casa abandonada com Yuna em minhas costas, e acelerei com as lâmpadas de neon descrevendo seus traços azuis no ar com meus movimentos. Não demorou muito para chegarmos de volta à parte civilizada de Saitama, mesmo eu mantendo uma velocidade considerada bastante baixa para os meus padrões.
O motivo dessa minha desacelerada para voltar à AAA, era a falta de firmeza da guria sobre minhas costas. Ela estava em uma posição que me fazia parecer uma mera motocicleta, sim, ela não deixava escapar esse tipo de detalhe. Porém, seus dedos agarrados ao meu pescoço e até mesmo suas pernas envolvendo meu corpo, não estavam nenhum pouco firmes para que eu pudesse correr em alta velocidade.
Para mim, aquilo era como se ela desejasse que eu fosse devagar.
Como ela não reclamou, julguei estar correto e continuei mantendo minha velocidade baixa.
Até optei por um caminho mais longo.
Contudo, como canis que sou e também como inugami, era quase inevitável não sentir que a guria estava apreensiva com alguma coisa. Provavelmente com o que aconteceu naquela residência com o Detetive Doz. Ou talvez por Tetsu, o que particularmente eu pensava ser o mais difícil.
O fato é que aquela aura esquisita que estava emanando dela, estava incomodando o seu companheiro mais próximo.
Dessa forma, acabei parando em uma rua deserta, ao lado de uma escola na mesma circunstância.
— Ei, o que foi, Ulim? — A voz dela saiu mais sonolenta do que eu esperava, o que indicava sua quantidade acumulada de cansaço.
— Sinto que está com sono, guria. Como vamos ser cruelmente castigados ao chegarmos na Associação, acho justo que deveria dormir agora, antes de ouvir a lista de regulamentos que quebrou e os desacatos que cometeu.
— Hmm, falando assim parece que está levando uma criminosa fugitiva.
— E não é mais ou menos isso que você é?
— Verdade... sou uma menina má que precisa ser castigada.
— Não diga isso de um jeito que torne tudo erótico!
— Foi mal... — ela bocejou. — Ai, acho que tirar um cochilo no seu pelo macio não é uma má ideia — e ela esticou seu corpo delicadamente sobre o meu, deitando sua cabeça em meu pescoço e o abraçando. A maciez de seus seios pressionou minha pelagem e suas pernas estenderam-se um pouco, fazendo suas coxas roçarem um pouco em mim.
Agradeci por ser um simples lobo, líder de alcateia.
— Você está mesmo cansada, não é?
— Sim, estou desde ontem sem dormir. E esse detetive esquisito me deixou com uma dor de cabeça esquisita. Ele disse um monte de coisas.
Enquanto a guria falava, eu dobrei minhas pernas e baixei meu corpo, me deitando em forma de ninho, para que nós dois pudéssemos nos sentir confortáveis. Eu não tinha a intenção de adormecer junto de Yuna. Aliás, alguém tinha de ficar de escolta. Com uma garota com o corpo e rosto tão chamativos quanto o da guria, mesmo estando dormindo em cima de um lobo mitológico, ainda poderia ser alvo de maníacos perambulando de madrugada por aí.
— Realmente, ele disse coisas confusas. O mais esquisito foi aquela lança.
— Esse é o motivo de minha dor de cabeça, seu pamonha.
— O que quer dizer?
— Não sei ao certo, mas, por algum motivo, aquela lança me pareceu muito familiar.
— Hmph, talvez realmente fosse Gungnir.
— Não, não nesse sentido. Estou querendo dizer que parece algo familiar, como se eu já tivesse a presenciado.
— Hmm, entendo. E você não se recorda da ocasião?
— Não com clareza. Faz bastante tempo e é uma lembrança muito nevoada. No final, pode ter sido só algo parecido, ou até um sonho lúcido.
— Sei, claro, pode ser qualquer coisa. Você deveria tentar chamá-la para ver o que acontece.
— Não. Para ser sincera, tenho medo do que pode acontecer. Não vou caminhar livremente em um terreno desconhecido, seu pamonha. E, mudando de assunto, você está sendo muito meu neném me deixando dormir em você. Prometo que quando voltarmos, vou providenciar um biscoito da melhor loja da cidade.
— Você sabe que não como biscoito, guria.
— Ah, verdade... você é todo chato.
— Me chamar de chato é a melhor forma de retribuir meu carinho por você?!
E ela soltou um curto riso gracioso.
— Eu particularmente gosto de cachorros, sabia?
— Sim, você já disse isso várias vezes.
— Mas você é o que eu mais gosto de todos, Império das Pulgas.
— Tsc, se gostasse tanto de mim, não me daria um apelido desses.
— Eu não vejo assim, seu pamonha. Um apelido desses é a melhor forma de demonstrar amor. No caso, o meu tipo de amor.
— Vendo da sua perspectiva, claro que parecerá plausível, guria.
— Mas eu só consigo ver da minha perspectiva, não é?
— Bem, sim... mas...
— Xeque-mate, Ulim. Seja um bom menino e aceite sua derrota.
Foi ao término das palavras de Yuna que o meu olfato sobrenatural disparou seu alerta que não se manifestava fazia mais de quarenta e oito horas. Meu focinho apontou para noroeste e a guria logo percebeu minha inquietação.
— O que foi?
— Um cheiro, forte e próximo — respondi.
— Cheiro do quê?
— Não é de algo, guria. Este cheiro é do Tetsu.