Capítulos (1 de 1) 06 Apr, 2023

A Lâmina do Dragão

O guerreiro não deve morrer sem antes ter usado suas armas.”

Miyamoto Musahi

Tóquio, 2099

As ondulações artificiais da água envolviam seu corpo numa temperatura agradável e calorosa. Vapores perfumados subiam até suas narinas causando um efeito relaxante. Depois de um dia cheio, estar naquela casa de banho particular era um alívio. Ali, Kotaro Sato não tinha mais preocupações. Sem compra de ações, video conferências e nem a imprensa lhe fazendo perguntas idiotas. Era CEO da Mugen e em breve seria o homem mais rico do planeta, se já não o era. Todos queriam comprar sua tecnologia.

 Um monopólio construído cuidadosamente ao longo de sua carreira. Rivais que pouco a pouco foram superados e comprados até que ele estivesse no topo. O mundo tornou-se tão dependente de androides sintéticos quanto um dia fora do petróleo e o Japão estava na ali na linha de frente. Hoje, a terra do sol nascente era o que a América jamais sonhara, e isso colocava um sorriso em seu rosto. No entanto, algo tirou o asiático de quarenta anos de seus devaneios. Em seu pulso, o relógio projetou um holograma.

Espantou-se com o via na projeção. Seu sócio e investidor, Nobu Sawamura, fora assassinado em sua própria casa. Enquanto ainda processava a informação, sua pele notou que a temperatura da água se intensificava. Tentou o comando de voz para normalizar o aquecimento. Não funcionou. Pelo contrário, a água ficou ainda mais quente. Soltou um palavrão enquanto a fumaça dos vapores subia cobrindo o ambiente. Ainda que não fosse tão atlético, subiu o mais rápido que pôde na amurada da piscina, sentindo tudo arder do tronco para baixo. Gritou enfurecido:

— RYUKA! Que merda aconteceu aqui? — Chamou por sua assistente sintética, mas não houve resposta. Gritou por ela uma segunda vez e o resultado foi o mesmo. No entanto, Sato viu uma silhueta feminina tomar forma enquanto esta caminhava por entre a névoa.

— Finalmente sua máquina idiota! Quer me fritar vivo?! — A raiva em seus olhos logo tornou-se medo ao ver que não era a sintética que estava diante dele. A cabeça metálica da androide rolou no chão diante do olhar pavoroso de seu dono. Um som eletrônico pode ser ouvido, quase como uma ignição. Saindo do vapor, uma mulher de longos cabelos brancos e pontas vermelhas empunhava uma katana escura. 

Suas orbes castanhas continham desprezo e seus lábios azuis exibiam uma satisfação aterrorizante. Uma tatuagem luminescente marcava-lhe o ombro esquerdo, onde uma serpente exibia sua suas presas. Não houve tempo de reação. A última coisa que Sato viu foi o sorriso daquela estranha, pouco antes da lâmina negra beijar seu pescoço.

Ela retornou seus passos para a saída. Enquanto caminhava, três sintéticos que outrora faziam a segurança do local, jaziam caídos com suas cabeças decepadas e circuitos queimados. Com um toque, ela acionou o relógio em seu pulso e os portões automáticos da casa tornaram a se abrir. Jogou um pequeno disco preto e pouco depois uma moto escura cercada de um brio azulado se materializou diante de seus olhos.

A alta frequência de decibéis marcava presença nos seus ouvidos. Sons eletrônicos envolviam as pessoas que seguiam religiosamente as batidas dos amplificadores de som. Hologramas dançavam e erguiam as mãos em meio as melodias produzidas pelo software da inteligência artificial. Luzes multicoloridas, corpos suados, sorrisos de êxtase, línguas trocando saliva e uma bebida azulada de alto teor neuro estimulante descendo goela a baixo. A boêmia juventude de Shibuya em seu auge. Este era um estabelecimento muito rentável cercado por um gigantesco monopólio e cada vez mais comum em Tóquio. Uma loira com um decote generoso lhe tocou o ombro por cima do moletom preto.

Virou-se e ela sorriu enquanto aqueles olhos verdes percorriam o rosto do homem abaixo do capuz. O pequeno e luminescente símbolo do infinito no seio esquerdo a denunciava. Uma sintética da luxúria, um modelo fabricado exclusivamente para o prazer de quem estivesse disposto a pagar. Suas lentes de contato detectaram o símbolo e o preço foi exibido diante de seus olhos. 500 meta ienes. Ele tinha bem mais que essa quantia, mas seguiu andando enquanto a sintética abordava uma mulher. Androides masculinos e femininos davam as boas vindas calorosas á Neo Tokyo, a casa noturna mais famosa da região. No entanto, ao contrário da maioria, ele não estava lá para se divertir.

— Olha quem apareceu, Katsu Akira... — Acima do balcão de vidro, uma atendente misturava alguns drinks. Seu cabelo era curto á altura do pescoço e mechas rosas no cabelo curto. Ela o cumprimentou pouco antes de tragar um cigarro eletrônico. A fumaça adocicada saiu lentamente daqueles lábios vermelhos e foi até o rosto dele. — O que o famoso capitão dos Dragões da polícia faz num lugar como esse? Espero que esteja tudo nos conformes. — Ela piscou enquanto o policial a observava com um olhar gelado.

— Meu trabalho. — Akira levou uma mão ao bolso e deslizou o pequeno disco sobre o balcão. O holograma de uma jovem asiática se formou. Longos cabelos platinados acompanhados de um rosto afilado e inexpressivo ergueram-se do disco. Uma chamativa linha vermelha paraiva sobre o nome dela, indicando a dimensão de sua periculosidade.

"Sayuri Kimura, 25 anos.” - Coeficiente criminal nível S: 5 homicídios.

— Uau! Garota problema... seu fetiche favorito. Todo mundo só fala dela agora. Não é pra menos, matou uns grandões das corporações. — A mulher apertou o disco com a ponta do cigarro e o holograma se desfez. Sorriu. — Suponho que seu departamento está sob uma pressão daquelas. Ah, adorei a barba a propósito...

— Agradeço o elogio e a sinceridade, então me deixe devolver o favor: O que ela queria aqui?

— São muitos clientes, não dá pra prestar atenção em todo mundo. Quem sabe ela só quisesse um pouco dos prazeres noturnos... — Ela sorriu ao indagar.

— Bom, talvez isso te ajude a... lembrar. — Ele pôs outro disco sobre o balcão. A mulher se viu de frente para a projeção que tirou o sorriso zombeteiro de seu rosto. Este por sua vez, tinha seu nome e foto de identificação.

"Mandado de Prisão - Kyouka Inoue. Sonegação de impostos."

— Sabe... este lugar dá bastante lucro, mas parece que algumas contas não batem. — Desta vez, foi Akira que sorriu ao erguer o polegar direito. — Só falta uma certa assinatura. Está pensando em mandar seus seguranças sintéticos em cima de mim, mas seria burrice. Um mero chamado e minha equipe fecha sua preciosa fonte de renda. Então, o que vai ser? — Sem alternativa e com um olhar assustado, a bartender finalmente cedeu.

— Merda...

...

As luzes em neon de prédios e veículos pulsantes preenchiam sua vista. Shibuya, um dos bairros mais importantes de Tóquio, famoso pelo comércio e sua agitada vida noturna. Embora toda aquela luz mascarasse a escuridão que pairava em cada esquina. Havia algo estranho, uma latente anomalia emanava daquele lugar. Mesmo com todo o polo econômico e metade dos sintéticos na polícia, os níveis de criminalidade eram os mais altos de todo o Japão. O que se intensificava sobretudo na periferia, dominada por traficantes e cafetões.

No fundo, Akira sabia que este era o motivo pelo qual escolhera aquele distrito. Limparia toda sujeira que encontrasse, livraria outros do mesmo sofrimento que teve ao perder sua amada para aquela cidade. Uma análise de veículos corria em suas lentes. Variadas placas e rostos invadiam seu campo de visão até que finalmente a encontrou. Ele se erguia acima dum viaduto e no alto, as nuvens espessas logo se transformaram em chuva. Baixou o capuz revelando um coque discreto nos cabelos negros. Levou a mão direita ao bolso retirando um pequeno disco vermelho.

Suspirou sentindo as gotas caírem sobre sua cabeça, correu e então saltou. Ao lançar-se com os braços abertos entre a noite neon, o disco fora acionado e o holograma começava a se materializar enquanto Akira ainda estava no ar. Uma moto feita de nanopartículas o envolveu antes mesmo que chegasse ao chão. Movida á hidrogênio, o motor roncou como um trovão. Uma Namikaze vermelha estava sob seu comando. Por vezes ouviu de seus superiores que dirigir aquela moto era como se homem e máquina se tornassem um. 

Tais veículos de alta potência eram o símbolo dos policiais federais de Tóquio. A moto escarlate cortava as ruas deixando um feixe de luz em sua aceleração. Passando por entre os carros com propulsores elétricos que os faziam planar, ele tinha uma estrada livre ao percorrer o asfalto poroso que absorvia água e evitava enchentes. A interface da moto saltou diante de seus olhos.

Alvo localizado – Veículo: Kawasaki GT 500 - Velocidade média: 110 km/h

A perseguição começou. O outro veículo era uma moto preta adornada pelo azul fluorescente que surgira em seu visor era um modelo inferior que antecedeu a Namikaze. Fabricada pouco antes que a Kawasaki fosse comprada pela Mitsubishi Motors gerando uma competição insuperável com todas as fábricas de veículos do país. Quando chegou em Shibuya, Akira soube que gangues modificaram essas motos para aumentar seu desempenho. Em poucos minutos o policial logo a alcançou, mas a mulher fez uma manobra. 

Adiantando-se alguns metros, desvio-se para a esquerda e ao pegar impulso, a moto atravessou os trilhos de uma platarfoma, pouco antes de um trem-bala passar de forma avassaladora pelas linhas. Sayuri olhou meio segundo por cima do ombro, vendo os vagões passarem, julgando ter se livrado do perseguidor. No entanto, a moto vermelha trovejou acima de si, pousando na frente da Kawasaki. Os veículos quase colidiram, mas a fugitiva ainda obteve espaço para correr, deixando para trás um feixe de luz azulado ao acelerar.

A disputa por terreno era intensa, decorria em meio a chuva e a água que não era absorvida pelo asfalto espalhava-se pelo ar com a velocidade dos dois veículos. Vermelho e azul alumiavam as ruas de Tóquio num jogo de gato e rato a cada curva. A área nobre do bairro ficou alguns quilômetros atrás e o feixe de luz azulado desapareceu ao adentrar na escuridão de um antigo prédio. Ela poderia pensar que estava segura ao usar as trevas para se esconder, no entanto, Akira podia ver claramente através das lentes. Estacionou a Namikaze na entrada e tal como foi ativada, tornou-se um pequeno disco novamente.

O moletom preto deu lugar a um colete balístico escarlate, no qual um dragão negro emergia no centro. Akira acionou outro disco, este, branco e conectado ao seu cinto. Uma bainha rapidamente tomou forma, assim como a katana dentro dela. E então, Akira a desembainhou e uma resplandecente lâmina branca reluziu nas trevas. Ergueu-a com as duas mãos e caminhou cautelosamente pelo solo não pavimentado, marcando a lama com a sola das botas até entrar no edifício. O portão enferrujado fora derrubado pela moto de Sayuri, embora toda aquela estrutura parecesse estar comprometida.

Akira olhou brevemente para as rachaduras e o mofo que adornavam as paredes, além das janelas quebradas. Provavelmente o lugar era usado como um recanto para drogados ou mesmo ponto de venda, cheirava à urina e contava com restos de cigarro e garrafas quebradas pelo chão. Mesmo um pouco distante, ele podia vê-la esperando. A interface ocular exibia uma visão de calor, revelando a posição da criminosa. O reconhecimento facial confirmou a identidade e os crimes cometidos pela mulher.

“Registro criminal confirmado. Comportamento hostil detectado, ameaça em potencial detectada. Policial Katsu Akira tem permissão para eliminar.”

Sayuri Kimura estava a trinta metros de Akira. Ela portava um traje tático, um colete em placas revestido da antiga tecnologia Kevlar. Geralmente usada em rachas de gangues, podia ser útil contra facas e projéteis comuns de décadas atrás, mas hoje era obsoleto diante das armas de nanotecnologia. Pouco depois o primeiro disparo veio, e a lâmina branca resplandeceu na escuridão. Akira repeliu a energia escura do nano sword ao girar a katana para a direita. Aquela arma foi a razão das visitas de Sayuri na boate. Seu uso era exclusivo da polícia e nas mãos erradas era sinônimo de tragédia. Ele sorriu ao dizer:

— Acredito que não preciso ler seu mandado. — Ao contrário dele, Sayuri manteve o mesmo senso de humor e continuou atirando enquanto corria. Três disparos desta vez, e a lâmina branca recebeu as investidas indo para cima, para baixo e por último à esquerda. No momento que ela se aproximou de Akira, a pistola se materializou em katana. Faíscas emergiram do atrito quando as duas espadas se cruzaram. A lâmina do dragão se viu diante da lâmina da serpente. Havia fúria nos olhos castanhos que o encaravam, estes foram acompanhados de dentes cerrados e uma respiração ofegante enquanto gotículas de suor lhe desciam pelo rosto.

— Como tem coragem de proteger aquela escória?! — A mulher disparou indignada enquanto Akira ainda segurava o cabo com uma mão, embora sentisse a forte pressão que ela colocava contra sua lâmina.

— Você os matou a sangue frio... A escória dessa cidade é gente igual a você! — A empurrou, criando uma pequena distância. Sayuri saltou para trás girando o corpo em resposta, enquanto sua katana materializou-se em pistola novamente. Mais tiros vieram. Ataque e defesa fundiram-se nas mãos de Akira. Deslocou-se veloz, ao passo que sua espada rodopiava ricocheteando os tiros até que o espaço entre eles diminuiu perigosamente.

As lâminas voltaram a se encontrar numa dança mortal. Giros e estocadas ditavam o compasso da frenética melodia dos metais em colisão. No entanto, tal sinfonia era dissonante, tocada em distintos estilos com o mesmo instrumento. Akira era semelhante a uma explosão controlada, seus golpes ressaltavam o equilíbrio perfeito entre força e leveza. Sayuri por outro lado, ardia em força bruta e velocidade como as chamas inquietas dum incêndio. No entanto, a luta findou com único golpe e um grito. Akira o fez assim que teve oportunidade, um corte horizontal rápido e limpo. A mão direita dela veio ao chão e a perigosa lâmina tornou-se um pequeno disco. Sayuri grunhiu de dor enquanto o sangue vertia de seu antebraço, tingindo o concreto com um vermelho escurecido.

— Não me deixou escolha... — Akira embainhou a katana. Suspirou e prosseguiu: — Você tinha energia e talento Sayuri, mas isso não te torna digna de empunhar esta espada. Raiva e ódio são a cegueira dos que pensam ser fortes, daqueles que acham que tem o direito de matar. — Mesmo com dor, ela riu daquilo.

— Palavras bonitas para alguém que se esconde atrás de um uniforme... Por acaso você não mata quando é necessário? — Apoiou um dos joelhos no chão e ergueu-se franzindo o cenho. Podia ter perdido a luta, embora seu olhar ardesse com a mesma raiva impetuosa de antes.

— Aqueles homens... Acabaram com a vida de muitas pessoas com aquelas corporações de merda! Encheram as cidades de sintéticos para substituir o trabalho humano e não fizeram nada sobre isso. — Argumentou pouco antes de cuspir no chão. — Metade da polícia é deles agora, não é? Quanto tempo acha que vai demorar até ser chutado de lá, Katsu Akira? Se acha herói, mas é só um fantoche.

— Sou um fantoche por cumprir meu dever e prender uma assassina?

— Já andou por esse lado de Shibuya, Akira? Vê o que acontece todo dia com as pessoas famintas que perderam seus empregos para máquinas e foram abandonadas por aqueles que juraram protegê-los? As mortes por gangues, as drogas e a infância perdida das garotinhas que se prostituem... Essa parte suja e feia que não aparece naqueles telões em neon é a realidade de muitos aqui! Aqueles desgraçados causaram isso, eles mereciam morrer!

— Acha que um discurso triste muda o que você fez? Vingança é um veneno que só traz mais sangue. Injustiça sempre vai existir, mas para isso existe a lei, e por isso eu luto.

— A lei não protege os mais fracos, ela pisa neles. Quem acha que a escreveu? Pode negar o quanto quiser, mas você sabe que está do lado errado. — A jovem encarou Akira por alguns segundos. O olhar convicto dela ainda o intrigava, lembrou-se de seu mestre, o velho Sakuragi que o treinou na arte das lâminas. “O espírito de um guerreiro não está na força de sua espada, mas no espírito em seus olhos.”

Subitamente, ela fechou o punho esquerdo ativando uma adaga em seu pulso. Cravou-a contra o próprio ventre. Gritou ao cair sobre os joelhos e baixou a cabeça. Sayuri selou seu destino como os antigos samurais diante da derrota. Ele a venceu, embora não tenha se sentido vitorioso no fim. Akira fitou aqueles olhos castanhos novamente. Desembainhou a katana enquanto ela ainda o observava, e por fim, a lâmina do dragão sibilou uma última vez.     

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