Capítulos (1 de 1) 15 May, 2023

Aylla Legorn

Na alvorada dos tempos, muito antes dos reinos que hoje conhecemos, havia um mundo chamado Cennet. No princípio de tudo, o dourado leão alado, Ílios, rugiu no vazio, e o que chamamos de universo veio a existir. Junto ao leão, a prateada loba Fengári correu pelo céu e suas pegadas deixaram trilhas brilhantes e pontilhadas, as quais se tornaram constelações. Ílios é o sol e Fengári a lua, e assim como o dia e a noite, Cennet é um lugar dividido entre a luz e as trevas. Onde homens governam e monstros andam à espreita, ainda que a natureza humana seja tão cruel quanto as piores bestas. Mas essa não é uma história sobre as longínquas eras mitológicas, sobre o triunfo de Magnus, o primeiro Rei, ou sobre a guerra contra Arghon, o senhor da magia proibida e seu reino nefasto, esta história é sobre uma exilada, sobre uma guerreira esquecida pelas crônicas, porém, lembrada pelas canções. No entanto, antes de falarmos dela, é preciso citar o fatídico massacre de Dankor.

                                                                                                                    …

Era uma noite festiva e primaveril quando a tragédia aconteceu. Um tempo feliz onde os campos eram férteis, os impostos mais brandos e a peste ainda era uma notícia distante. No Condado de Dankor, ipês brancos floresciam ao redor do castelo, mesas fartas e canecas cheias povoavam os salões. Em meio aos sorrisos dos nobres que celebravam o nascimento do filho de lorde Petros Aerion, haviam as alegres melodias da harpa e da flauta, as danças e os belos vestidos, a poesia dos hábeis trovadores e o melhor vinho era servido em homenagem à criança que viera ao mundo. Entretanto, os festejos foram interrompidos quando uma camponesa adentrou o salão com um urro gutural, gritando maldições.

Em contraste com a maioria ali bem vestida, ela vestia trapos, seus cabelos eram desgrenhados, cheios de cinza e a beleza que um dia estivera em seu rosto agora se resumiam a hematomas. Ela ergueu o indicador com a mão trêmula. Acusava o lorde Petros de estupro, escandalizando a todos. Enfurecido, ele ordenou a um cavaleiro que executasse a mulher. Jurando pelo nome que não deve ser dito, o nome de Arghon, fez uma última prece quando a espada transpassou seu ventre. Aquela voz demoníaca fez estremecer até o mais valente dos homens naquele salão.

— Que a besta os consuma, que se lambuze com o vosso sangue e que a morte os castigue eternamente! — Morta pelo fio da espada, dois homens a arrastaram para fora enquanto o lorde ordenou que a festa continuasse.

Subitamente, a lua sumiu entre as nuvens, e um vento gélido invadiu o salão, apagando todas as velas como num único sopro. Todo riso e cantoria cessou enquanto gritos vieram lá de fora e num estrondo, a muralha do castelo veio a baixo. Cavaleiros eram trucidados por alguma coisa na escuridão, o rosnado horripilante de uma fera se ouviu, e quando a enorme criatura adentrou no castelo, um par de olhos sinistros e amarelos crescia na noite, e então a morte sorriu para todos. Homens, mulheres, crianças, velhos... não houve distinção, e ao velho lorde só restaram os gritos de horror quando os dentes do monstro arrancaram seus membros um a um, e o devoraram lentamente.

                                                                                                                …

Após cruzar a Floresta das Violetas, ela desmontou do cavalo e parou perto das margens de um riacho. O equino de pelagem branca se chamava Bolbur, e mordiscava as gramíneas verdejantes enquanto a andarilha agachava-se para abastecer seu odre. O reflexo ondulante da água revelava sob o capuz negro longas tranças escarlates, além da face austera onde um par de orbes com cores distintas se destacava. Continuou enchendo a bolsa de couro quando notou que não estavam sozinhos naquele bosque. Saindo de dentro das matas, um grande urso pardo disparou para um ataque feroz. Aylla desembainhou sua espada pouco antes do animal saltar sobre ela.

Após um poderoso bramido, a grama manchou-se com tons de rubro, e o silêncio se fez ouvir outra vez. De pé, a mulher erguia a espada com as duas mãos, frente a frente com o urso. Ainda sentiu as garras caírem sobre seus ombros como num abraço mortal, quando a lâmina prateada atravessou o crânio do predador. Com o rosto ensanguentado, ela puxou a espada e o animal desabou pesadamente na margem do riacho. Por um instante voltou a olhar as águas, vendo seu rosto austero tingido com sangue. O vento sibilou, balançando o manto verde e desgastado sobre suas costas, onde o brasão da raposa ainda podia ser visto.

— A caçada só termina na morte.

Ergueu o olhar para o horizonte, onde o crepúsculo alaranjado prenunciava o alvorecer nas terras do Rei, de onde fora banida para sempre pelas supostas monstruosidades de sua linhagem. E agora, pelo advento de um monstro, ela era convocada a retornar.

                                                                                                                     …

Era o trigésimo ano do reinado de Rickard Magnus quando as trevas caíram sobre o condado de Dankor. A notícia do massacre correu aos quatro ventos. A tragédia que acometeu a família de nobres revoltou o povo e logo tal insatisfação chegou aos ouvidos do rei. Rickard sabia que não demoraria muito até os relatos chegarem aos ouvidos de seus inimigos ao longo das fronteiras. Certamente iriam zombar da fraqueza de um rei que sequer consegue controlar seu próprio domínio. E naqueles tempos sombrios bastaria pouco para que uma pequena fagulha acendesse o fogo da guerra. No entanto, as tropas que marcharam para o castelo não obtiveram nada além de mortes misteriosas e viúvas chorosas. O outrora pacífico condado tornou-se um lugar tenebroso, a ser temido e evitado. Fossem camponeses ou fidalgos, ninguém ousava pôr os pés perto do castelo que carregava tal maldição. Perturbado pelas notícias, não houve alternativa ao soberano senão convocar a última filha de um clã de guerreiros exilados, banidos por bruxarias, condenados a vagar errantes e sem lar, para que a amarga lembrança de seus pecados nunca seja esquecida. A Casa de Aylla Legorn, onde as raposas caçam na escuridão.

Em seu trono de ouro, o soberano a esperava. Vestia uma túnica púrpura e braceletes reluzentes envolviam seus pulsos. Homem sisudo e experimentado, a barba grisalha e uma cicatriz adornavam seu rosto cansado pela insônia. Rickard não queria chegar a tanto, embora soubesse que não haviam mais opções. Quando Aylla finalmente cruzou os portões da rochosa Fortaleza Pendragon e dirigiu-se à Sala Real, os nobres discutiam entre si enquanto o rei mantinha-se indecifrável. Adentrara na corte a passos lentos, sob um gibão de couro escuro, sendo recebida com olhares e murmúrios de julgamento. A caçadora baixou o capuz que cobria seus cabelos trançados e beijados pelo fogo, revelando as frias íris que iam do verde ao azul em sua face quase pálida e rígida. Sob suas costas havia uma capa verde coberta com pele de urso, e seu aspecto jovial não lhe negava uma aura intimidadora. A marca ocular era um resquício da profana mistura entre elfos e humanos, símbolo que condenava sua casta ao repúdio. Diante do rei, levou a mão esquerda ao pomo enegrecido da espada bastarda em sua cintura, o qual tinha a forma da cabeça duma raposa. Apenas lhe lançou um olhar gélido, aguardando que o monarca falasse.

— Ajoelhe-se perante o rei, sua aberração! Mostre algum respeito! — Declarou com indignação, Balder, o conselheiro real. Era um velho gorducho em roupas de linho. A Legorn sorriu de canto ao responder:

— Caso não lembre sou uma exilada, milorde. Sem terras e bens, servindo a minha própria culpa, como diz a lei. Logo, não preciso me curvar a um rei que não sirvo.

— Sua bruxa insolente! Muitos morreriam por menos!

— BASTA! — Bradou Rickard silenciando a ampla sala. — Não a chamei aqui para me saudar Legorn, sabe bem disso. Creio que ouviu a respeito de Dankor.

— Todos em Cennet ouviram. Posso dizer que muitos dos seus súditos têm medo, alguns até questionam sua autoridade quanto a isso.

— Este reino já tem problemas o suficiente, por isso quero encerrar este assunto de vez. Eis o seu serviço: Descubra quem ou o que está por trás disso e elimine. Seus métodos pagãos pouco me importam. Como recompensa, proponho anistia a todos os crimes da Casa Legorn e seus direitos como herdeira serão restituídos. — Propôs-lhe o rei, embora a guerreira revelasse desapontamento em seus distintos e observadores olhos.

— Com todo respeito... majestade; não estou interessada em perdão e feudos. Tampouco em lhe pagar impostos ou fazer rezas inúteis. Pague-me um preço justo pelo serviço, afinal ouro e prata não lhe faltam. Não deseja salvar sua reputação? Ela vale tão pouco assim? — Aylla indagou abrindo os braços, divertindo-se com a vermelhidão que tomava o rosto do velho conselheiro. Rickard entrelaçou as mãos, roçando o polegar sobre o indicador com o selo do dragão. Ponderou por um instante e suspirou antes de concluir:

— Se é para me livrar deste maldito fardo... Diga o seu preço, antes que eu me arrependa.

                                                                                                                     …

O corcel branco trotou para fora dos portões de Pendragon naquela mesma manhã nublada, deixando para trás o aglomerado de casas e praças suntuosas que faziam a movimentada capital ser o centro econômico do Reino. Seguindo pela estrada de terra ao leste, Aylla chegaria à Dankor em pouco mais de três dias. A paisagem verdejante misturava-se ao cinza rochoso dos casebres de lordes e vassalos menores que se estendiam pela faixa de terra. Cavaleiros, viajantes, pescadores e caravanas de comerciantes compartilhavam a estrada até Pendragon, um lugar que prometia prosperidade e paz, embora a Legorn suspeitasse que tais coisas não durariam muito. Em cidades mais afastadas a peste castigava o povo, a escassez corria pelos campos, além de terço da colheita ser cedido à coroa enquanto tributos pesavam sobre os ombros dos cidadãos. Nesse ritmo, os tempos de paz iriam se esvair tão rápido como palha seca ao vento, e a Legorn ficaria confortavelmente neutra enquanto os lordes se matavam em sua própria ambição.

Antes da tragédia, Dankor era conhecido por sua produção têxtil e pela lealdade para com o rei. O velho lorde Petros e sua família estavam sempre presentes em jantares e festas. E aparentemente sua relação com o monarca e seus vassalos era respeitável. Aylla não tinha certeza com que tipo de monstro estava lidando. Já havia caçado e matado várias feras nefastas, mas sabia que tal criatura era poderosa, e tal poder só poderia vir das proibidas magias de sangue.

O sol já estava para se pôr quando os cascos de Boldur pisaram na dita terra amaldiçoada. Os gélidos ventos do inverno beijaram-lhe o rosto, anunciando mais uma dificuldade para os moradores. Significava mais lenha para cortar e mais comida para estocarem ante à rigorosa estação que já se anunciava. A neve começava a tecer um tapete alvo sobre a estrada, e o único estabelecimento em meio aos casebres era uma modesta taverna. A poucas léguas dali ficava o castelo da Casa Aerion, ou que sobrara dele, afinal, nenhuma alma viva havia retornado para relatar o estado da edificação. A caçadora puxou as rédeas e desmontou. O fiel companheiro equino lhe esperaria como de costume, recebendo metade de uma cenoura e um carinho na crina.

Aylla prosseguiu, levando o olhar até a estrada que se seguia num terreno irregular e de vegetação rasteira. Era estranho não ver aquelas bandas tão movimentadas como antes. Os poucos transeuntes que viu na região logo corriam assim que a viam, outros mais ousados davam-lhe um olhar raivoso, seguido de xingamentos e palavrões. O lugar cheirava a magia, mas as pessoas... elas cheiravam a medo. Seguiu-se enfiando as botas na terra lamacenta até se dirigir à taberna. O lugar parecia já ter vivido momentos melhores, mas certamente, agora não passava de uma espelunca onde um bardo desafinado vez ou outra entoava canções conhecidas. Quando entrou no salão, viu um rato correr rapidamente por uma das mesas de madeira, quem sabe estivesse mal cozido ou fizesse parte da decoração. Atrás do balcão de madeira, o taberneiro gorducho polia um copo enquanto ela continuava os passos. Ao erguer a cabeça, o velho arregalou os olhos.

— Saudações. — Aylla cumprimentou-o em tom monocórdio enquanto ele exclamou: — Santo Ílios, é uma Legorn!

— É o que dizem, os olhos sempre me entregam. — Ela sorriu em ironia, pondo uma mão no balcão, deixando duas moedas. — Não se preocupe taberneiro, apenas me dê algo para forrar o estômago e vou embora.

— Não seja por isso, qualquer um com dinheiro é bem-vindo nessa pocilga fedorenta! — Replicou-lhe com uma risada rouca. — Além do mais, não tenho recebido muitos clientes desde... aquilo. Ah sim! Temos guisado de peixe, sopa de legumes e cerveja.

— Sopa e cerveja. — Fez o pedido e sentou-se, correndo os olhos por cima do ombro ao redor do salão enquanto o homem enchia uma caneca. — Os negócios andaram movimentados. — acrescentou ao apontar para uma mancha de sangue seco no chão. Em silêncio, ele assentiu com a cabeça assim que lhe passou o prato de sopa.

— Ah sim, esqueci de limpar aquela porcaria. A mulher do padeiro andou pulando a cerca e o marido esfaqueou um rapaz na semana passada. Como se não bastasse, o desgraçado do meu sobrinho Lodus abriu uma taverna na cidade vizinha e roubou meus clientes por causa da maldita reputação desse lugar. Agora não tenho dinheiro sequer para pagar aquele maldito bardo!

— São tempos difíceis, e o inverno já começou. — Bebericou da caneca, limpando a garganta. — E enquanto os lordes festejam, vocês ficam com as sobras. Às vezes considero-me abençoada por ser uma exilada.

— Pelo menos não paga impostos. Passamos por coisas piores. A peste, o saque do Porto, os monstros... E aqui ainda estamos. Somos todos sobreviventes, não? — Indagou enquanto ela ia a generosas colheradas diminuindo o ensopado com legumes. O homem ainda lhe conseguiu um pão decente entre os que estavam cobertos de mofo. Este foi partido e molhado no caldo. A ruiva acrescentou:

— Bom, se as coisas continuarem assim, a tragédia de Dankor vai ser história de criança comparado à uma guerra civil. Sempre foi assim, reinos caem e outros surgem no lugar. Piores ou melhores? Eu não sei dizer. Talvez seja só mais uma desculpa para justificar mais carnificina. — Ela terminou a refeição e sorveu a bebida num último gole. — Por ora, tenho um trabalho no castelo de Dankor.

— Não ouviu tudo aquilo? Aquela coisa maldita é invencível! Ninguém que cruzou o caminho daquele castelo voltou para contar história. Por acaso não tem medo de morrer? — Aylla sorriu em contraste ao alarde do velho. Ouviu aquilo inúmeras vezes. A caçadora flertava com o perigo e tomara a morte para uma dança a cada trabalho.

— Por gerações minha Casa enfrentou coisas piores que a morte. É o nosso jeito de vida, somos Legorn. Caçamos na escuridão, e deixamos que a espada decida nosso destino. — Ergueu-se numa feição impetuosa, fazendo-o recuar enquanto as chamas das velas refletiam em seu olhar azul esverdeado. Agradeceu pela refeição e girou os calcanhares, caminhando até a porta. Parou por um instante, farejando o odor fétido de magia sombria, algo estava acontecendo. Sem olhar para trás ela advertiu:

— Cerre as portas e não saia. Caso contrário, seu sobrinho terá duas tavernas para ele. — Apertou o punho sobre o pomo da espada. — Alguma coisa está à solta naquele castelo, e o que quer seja, está com fome.

                                                                                                                              …

A noite caiu sorrateira entre um céu sem estrelas e acinzentado quando Aylla cavalgou rumo ao castelo. Avistou ao longe as duas torres negras quando um arrepio lhe correu a espinha. A vegetação dos bosques trazia um aspecto soturno, quase melancólico à paisagem escura de Dankor. As águas do afluente do rio Lys corriam silenciosas próximas dos salgueiros na margem onde restos de esqueletos jaziam. As pupilas de Aylla dilataram e uma pequena luminescência acendeu-se entre seus olhos. Sentia a magia presente tal como o cheiro de morte no ar.

Desmontou, ordenando em seguida que Bolbur a esperasse ali. Em um relincho, o cavalo pareceu murmurar, embora terminasse por acatar o comando. Sob a lua cheia ela desembainhou a espada com a mão esquerda, caminhando contra o vento que agitava e seu cabelo carmesim que contrastavam com as sombras do condado. Subitamente, girou o punho e a lâmina cintilou no ar chocando-se com uma flecha, despedaçando-a no movimento. Uma ossada pontiaguda fora disparada do bosque, e mais delas vieram.

Aylla disparou em direção à mata. Usando de seus sentidos aguçados, ia bailando com a lâmina em punho que repelia as investidas. Foi ganhando espaço até deparar-se com um esqueleto vivo que possuía parte da carcaça sobre o crânio, segurando um arco entre aquelas mãos mofadas. Quando retesou a corda, recebeu um avassalador golpe vertical da Legorn. O esqueleto foi partido ao meio do crânio para baixo, terminando por desintegrar-se em cinzas fétidas ao vento. A caçadora sentiu algo segurar sua bota, uma mão ossuda emergiu da terra quando um outro morto-vivo com apenas um braço saltou de uma árvore empunhando uma espada enferrujada. Aylla sibilou ao vento com o punho direito cerrado.

— Parum flammae... — E erguendo a mão, uma esfera em brasas consumiu-o por inteiro. Os dedos ossudos ao redor da bota se desfizeram e ela encarou a escuridão. Seus ouvidos captaram o som de numerosos passos se aproximando, não demorou para que uma centena de soldados ossudos a cercarem pelos flancos. Ao centro, levantou a espada e sorriu de soslaio. Sucedeu-se uma dança mortal com metal e ossos se chocando enquanto labaredas de fogo acendiam-se numa tempestade de brasa e cinzas. Quando o último deles caiu ante o fio da espada, o sussurro dos ventos correu pelas copas das árvores. Nas trevas, uma voz de muitas vozes agonizantes se ergueu até ela.

“Caçadora... filha do sangue antigo... Não impedirás a sua vinda! Reis cairão, castelos irão ruir, pois Arghon retornará para tomar o que é seu, quando ele chegar, a era da cinza e da espada cairá sobre vós como uma chuva pesada.”

As vozes ainda corriam pelo bosque, e a guerreira rapidamente tomou um elixir esverdeado, uma solução de ervas antigas para recobrar as forças. Pouco depois, cessaram as vozes e o silêncio pairava na noite. Sua certeza se confirmou, o culto à Arghon, o senhor das sombras, ligava a prática da magia proibida na região. Todavia, Aylla ainda sentia uma forte presença oriunda do castelo, algo ainda estava à espreita. Saindo do bosque, ela caminhou cautelosamente até a antiga morada da Casa Aerion.

Os estandartes com o falcão prateado ainda repousavam sobre a amurada do castelo. Dos largos portões de madeira nada restara. Escudos despedaçados, espadas e lanças jaziam no pátio ao lado de corpos carbonizados. Mesmo sem portas e sob aquele cenário desolado, a edificação de duas torres ainda passava a imponência duma fortaleza ancestral. Uma chuva fina começa a cair enquanto a caçadora seguia seu rumo em meio a lama, ponderando o que diabos emanava aquela energia tão nefasta.

No entanto, ela parou quando sentiu a presença...já erguendo a lâmina. Mirando os olhos numa poça, viu as águas moverem-se à medida que pisadas maciças se aproximavam. A respiração pesava, hesitação e ímpeto misturavam-se entre o instinto de sobrevivência e o orgulho de guerreira. Com um alto e terrível rugido, as chamas vieram. Aylla fez uma pirueta para a esquerda, desviando-se da calorosa rajada. Saindo das sombras, a criatura revelou-se gigantesca. Seu corpo e face eram de leão, sobre suas costas abriram-se asas de morcego e em sua cauda erguia-se um aguilhão de escorpião. Uma fileira de dentes afiados sorriu para Aylla quando a Manticora rugiu uma segunda vez.

“Um devorador de homens… Essa besta estava extinta!” — Pensou a Legorn, pegando uma das lanças no chão lamacento. Arremessou-a numa das asas, porém a arma foi rebatida pela longa e venenosa cauda que podia matar qualquer ser vivo com um único golpe. Enquanto se movia tomando distância, a caçadora lembrava dos escritos do Bestiário, o livro dos monstros onde havia a descrição das criaturas e o método de matá-las.

“Manticora, o devorador de homens. Monstro híbrido com partes de leão, morcego e escorpião. Dez vezes mais forte que as quimeras, geralmente não deixa restos de suas vítimas, não há registro de caçadores vitoriosos em combate.”

Apanhou um escudo ensanguentado e endireitou os pés para mais uma dança com a morte. A criatura irrompeu contra Aylla, que disparou ao encontro da Manticora, gritando em resposta. Quando a criatura ia abocanhar-lhe a cabeça, a caçadora conjurou suas chamas na direção dos grandes e temíveis olhos esverdeados. Um urro de dor se ouviu enquanto a Legorn levou o escudo ao peito e lançou-se ao chão deslizando na lama entre as patas do monstro. Uma das espessas garras resvalou em seu ombro direito, perfurando a armadura de couro e rasgando parte do músculo.

Grunhiu ao sentir o ferimento, no entanto, a caçadora conseguira chegar ao outro lado. Largou o escudo, e ergueu-se rapidamente num pulo para decepar a cauda com a espada. O metal chocou-se violentamente contra o aguilhão, rompendo o próprio fio de prata no impacto. A ruiva olhava atônita o pedaço da lâmina cair no chão, e reagiu quase imediatamente quando o ferrão se movimentou. Se tivesse recuado alguns segundos a menos, teria seu ventre perfurado e morreria agonizando com o veneno. Sentiu as pernas fraquejarem e o corpo pesar, buscava o ar como quem se afogava no mar. A besta virou-se em mais um rugido furioso. Batia as asas subindo na noite, parecendo ainda maior e mais temível diante de uma presa encurralada. Aylla cerrou os dentes, empunhando com força duas mãos o pomo de raposa da lâmina partida. A Mantícora abria a garganta para soltar as labaredas contra a Legorn. Ela fechou os olhos, pois bem sabia, ali seria o fim. A única dúvida era para quem a morte sorriria.

“Medo... Medo é a cegueira do guerreiro... Quando as trevas caírem, erguerei minha espada e as chamas resplandecerão.”

— DIVINUS IGNIS! — Mediante as palavras, o fio da espada tornou-se completo, rubro e flamejante. A espada rubra alumiou-se em chamas quando o monstro rugiu. A explosão foi ouvida há milhas de distância num estrondo avassalador. Quando a poeira cessou, um silêncio ensurdecedor se ouviu. A Legorn estava caída e ensanguentada próxima à Manticora que jazia na lama, a cabeça da besta fora decepada. Sentindo uma dor latejante, Aylla ergueu um joelho depois do outro e levantou-se com dificuldade. Sua capa perdeu-se no último ataque e algumas chamas deixaram suas marcas na armadura de couro.

Levou uma mão ao ombro ferido, e levou o olhar até a criatura. Formidável, poderosa e agora morta. Naquele instante, do castelo saiu uma mulher encapuzada sob vestes negras. A Legorn sentiu a aura sombria, tentou conjurar as brasas, mas estava completamente esgotada. Aylla conseguia apenas ver parte de sua face pálida além dos finos lábios secos e rosados. Ela não moveu a boca por um momento sequer, embora as mesmas agonizantes vozes do bosque ressoassem no ar.

“A guerra se aproxima, filha do Sangue Antigo. Cedo ou tarde a escuridão cobrirá todo o Reino, e da espada de Arghon ninguém escapará.”

Um portal se abriu e por ele a mulher adentrou, sumindo da visão da caçadora. Boldur chegou em seguida num trote apressado, relinchando ao encontrar sua cavaleira. Aylla subiu com certa dificuldade na cela e deixou-se cair de cansaço, pouco antes dele galopar de volta para a taberna.

A história da Legorn e a Manticora de Dankor espalhou-se rapidamente. O velho recuperou seus clientes e o condado aos poucos tornou-se próspero novamente. O Rei pagou a caçadora a fortuna devida e vale dizer que desde aquela noite quando o bardo desafinado da estalagem em Passo Largo juntou alguns acordes, a Canção da Espada Rubra começou a ressoar como uma das melodias favoritas pelos salões e tavernas de Cennet. 

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