Capítulos (2 de 7) 14 Jun, 2023
7. A Boneca Amaldiçoada
Passadas as festas de fim de ano, ainda restavam as férias de janeiro antes que o pesadelo das aulas voltasse. E naquela época, sem internet nem redes sociais, ficar em casa não estava na programação da turma. Exceto claro, quando no horário sagrado da TV Manchete estavam em exibição as reprises dos tokusatus; Jaspion, Jiraiya, Cybercop, Kamen Rider Black e a febre do momento; o anime (ainda chamado de desenho) Os Cavaleiros do Zodíaco. Lili não perdia um episódio e era comum entrar em discussões calorosas com os meninos sobre qual era o Cavaleiro de Ouro mais forte. No entanto… o que acorreria naquela primeira semana de janeiro seria tão assustador quanto os planos do Mestre do Santuário…
…
Era uma terça-feira calorenta e abafada, até vento parecia estar parado. E em meio ao calor, Bolinha teve a ideia de fazer um piquenique na praia, cada um levava um lanche e depois todo mundo iria cair na água. Decidiram fazer uma cotinha e assim todos saíam da praia felizes e com o estômago cheio.
Diogo se responsabilizava por levar cachorro-quente, Carlinhos traria os salgadinhos, Bolinha os biscoitos, Lili com os famosos pães-de-queijo de Dona Carla e Lucas levaria os geladinhos. E nessa farofada toda, não poderia faltar a supervisão de um adulto, ou quase isso… Coube então a Roberto, irmão mais velho de Carlinhos, a missão de vigiar a turma durante aquela tarde. No entanto, nem tudo sairia como esperado, como veremos a seguir.
...
Na bike preta, Lucas pedalava apressado até o prédio de Carlinhos, levando no bagageiro uma caixa de isopor amarrada com elástico, a qual continha os geladinhos de variados sabores de frutas. Estava virando a esquina do Pé Vermelho, distraído com uma pipa de Power Ranger, rezando pra que ela caísse perto dele, quando ouviu uma voz conhecida.
— Come poeira, lesma! — Diogo o ultrapassou, gargalhando, com sua nova bicicleta de marcha. Uma Caloi vermelha que só quem tinha dinheiro podia comprar e o Quico do bairro, ganhou de presente do Papai Noel.
— "Aquele metido!" — Pensou Lucas, bufando. Se tivesse um pouco mais perto, teria conseguido acertar uma cusparada no cabeça de fósforo, que tomou a dianteira e acabou por chegar primeiro no prédio. No térreo, encontrou-o com aquela cara zombeteira. e garbosa.
— Tá olhando o quê, bestão? — Perguntou Lucas, ainda emburrado.
— Gostou da minha bike? — Deu um giro, uma empinada e parou exibido. — Se quiser te deixo dar uma volta.
— Ah tá, como se eu quisesse... — Lucas cruzou os braços indiferente. Na verdade, queria muito andar naquela bicicleta e testar as marchas, mas seu orgulho falava mais alto.
Pouco depois, Bolinha chegou no térreo, vestindo uma camisa do Popoye, uma bermuda com estampa tropical e um par havaianas nos pés. Nas costas levava uma mochila com os pacotes de biscoitos variados.
— Vocês já tão brigando de novo? — Bolinha perguntou, pouco antes de tirar discretamente um Baton Garoto do bolso, colocando-o na boca como se fosse um charuto e pondo a mão no queixo numa imitação. — Elementar meu caro Watson! Qual será a besteira da vez?
— Que nada, é só o Lucas com inveja dessa belezinha aqui.— Deu dois tapinhas na bike nova, orgulhoso. — Que deixou a bike dele no chinelo. Essa Tornado tá mais pra ventinho! — Brincou Diogo com as mãos no guidão da bicicleta, enquanto Lucas ignorava a troça.
— E que demora é essa do Carlinhos? A gente já devia estar saindo, são quase 8h!
— OH CARLINHOS! — Bradou Diogo. — PODE SER OU TÁ DIFÍCIL?!
— TÔ CHEGANDO! — Um grito veio do 3º andar. Carlinhos tinha acabado de colocar os salgadinhos numa sacola e foi acordar o Marcelo, seu irmão mais velho.
— Só eu que entendi "tô cagando?" — O ruivo soltou outra piada de gosto questionável.
— Deve ser porque teus ouvidos tão entupidos de cera. — Respondeu Lucas, fazendo uma careta com as mãos nas orelhas e mostrando a língua.
— Algum de vocês viu a Lili? — Bolinha interrompeu a futura discussão com a pergunta e os três se entreolharam.
— Peraí, a Lili ainda não chegou? É mesmo… Essa é nova... — Comentou Diego, ao passo que Lucas ergueu uma sobrancelha.
— Sério? Tudo bem que ela se atrasa, mas sempre vem quando marcamos. — Lucas ponderou. — Se a Lili não pudesse ir, teria nos avisado com certeza.
— Será que aconteceu alguma coisa? — Bolinha perguntou, já um pouco preocupado.
Carlinhos chegou trazendo a bicicleta e interrompendo o assunto.
— Caramba! Vocês não podem esperar nem cinco minutos? Eu tive que acordar o Roberto, ele dorme feito pedra e já tá desce... — Carlinhos parou de falar quando percebeu que eles estavam tensos. — O quê que tá rolando? E cadê a Lili?
Após ser colocado a par da conversa e pegar o cartão telefônico do irmão mais velho, Carlinhos saiu com os meninos até o orelhão vermelho que ficava na esquina do prédio. Ainda tiveram que esperar um tempo na fila até que uma velha terminasse toda a fofoca do fim de semana, com uma amiga do outro lado da linha.
Assim que a senhorinha fofoqueira saiu, Carlinhos prontamente discou o número do telefone fixo da casa da garota. Todos aguardavam com expectativa, alguma resposta, um "Oi", a ligação chamava e chamava, mas ninguém atendia. Frustrado, o garoto pôs o telefone no gancho. Dos cinco, Lili era a que morava mais distante, a casa dela ficava no final da rua, bem depois da mercearia do Seu Juca, perto do Sovaco das Cobras ou rua 14.
— O jeito vai ser passar lá na casa da Lili. — Sugeriu Carlinhos.
— Vai ver os pais dela saíram, talvez tenham ficado doente e foram ao médico. — Argumentou Bolinha.
— Mas, mesmo assim ela teria avisado a gente. Tem alguma coisa errada... — Advertiu Lucas.
— Ou vai ver que a coisa foi feia e eles saíram as pressas... — Diogo notou um olhar meio torto de Carlinhos. — Que foi? É só uma teoria. E além do mais, vocês não acham que a Lili andou meio… estranha?
— Do que é que você tá falando? — Indagou Lucas.
— Ela ganhou uma boneca da Xuxa. — Diogo falou num tom quase sombrio.
— E??? — E os três perguntaram em coro.
— Vocês não sabem? — Fez uma expressão sombria, os olhos cobertos pela juba alaranjada. — Aquela boneca é A-M-A-L-D-I-Ç-O-A-D-A! — passou uma ventania vinda de lugar nenhum.— Eu li uma matéria de jornal.
— Qual é, Diogo? Essas coisas não existem, isso é coisa de filme. — Lucas opinou, Bolinha cruzou os braços concordando e apesar de também achar isso algo absurdo, Carlinhos começou a sentir um frio na barriga.
— Eu tô falando sério!— Diogo fez uma pausa dramática, todos os ruídos locais silenciaram, nem um carro passava na rua, nem um transeunte e nem um canto de pássaro.— Tudo começou quando uma menina pobre pediu essa boneca para a mãe, só que a mulher não tinha grana, e brincou dizendo que só poderia comprar se o diabo mandasse o dinheiro. No outro dia, de algum jeito misterioso, o dinheiro apareceu. E então ela foi na loja e comprou a tal boneca da Xuxa. De noite, a boneca ficava com os olhos vermelhos e cheia de garras, e algum tempo depois a menina apareceu... — outra pausa angustiante.— mortinha da Silva!
— Vish! Misericórdia! — Carlinhos se benzeu.
— Credo! Que roteiro previsível... — Disse Bolinha.— Piff!
— Eu não acredito nessa baboseira. — Afirmou Lucas, revirando os olhos.
— Se saiu num jornal é porque é verdade. Dizem que um padre trancou a boneca numa paróquia pra ela não sair por aí tocando o terror de novo. — Completou o ruivo. — Mas nunca se sabe, né?
Os quatro ficaram em silêncio por um instante, até que Carlinhos, engolindo um pouco do medo daquela lenda urbana, cerrou o punho e decretou: — Com ou sem boneca assassina, a gente vai lá!
— O Carlinhos tá certo, a Lili já tirou a gente de muita enrascada. — Bolinha concordou.
— Vocês não ouviram nada do que eu disse? — Diogo ficou contrariado coçando a juba enferrujada.
— Em alto e bom-tom. Mas a Lili precisa da gente. — Concluiu Lucas, já subindo na bike com Bolinha no bagageiro. Carlinhos cruzou os braços e olhou para Diogo, que exibia uma carranca emburrada e derrotada.
— E aí Diogo, rola ou enrola? — caçoou Bolinha.
— Tá bom, tá bom, já que tó no inferno, abraço o capeta! Vamos lá, mas depois não digam que eu não avisei.
…
Apesar de Bolinha oferecer o “nada suspeito” convite de segurar os lanches, os meninos resolveram deixar os suprimentos na casa de Carlinhos, ainda que seu irmão mais velho protestasse porque foi acordado cedo, pra nada. Logo subiram nas bikes e se foram pedalando rua abaixo, passando por várias residências até finalmente chegarem na casa de Lili. Por cima do muro alto coberto por cerâmica brancas, podia-se ver um pé de jambo. Na frente da residência haviam dois portões de alumínio, um maior na garagem e outro menor na entrada os garotos estavam. Lucas tomou a frente e deu um toque na campainha. Ouviram o ding-dong tocar uma, duas, três vezes... Até tentaram bater palma e chamar a menina, mas ninguém deu as caras. Já estavam quase desistindo quando de repente, um grito se ouviu lá de dentro.
— SOCORRO!
— Vocês ouviram isso? — Lucas perguntou consternado.
— É a voz da Lili! — Afirmou Bolinha.
Carlinhos, tomado de um ímpeto incomum, correu ao portão e percebeu que o ferrolho estava aberto, os meninos vieram logo atrás e quando mal perceberam, já passavam pelo quintal ficaram de frente para a porta da casa. Apesar dos protestos de Diogo:
— Sorte que eles não têm cachorro, espero que ninguém denuncie a gente por invasão de propriedade.
— Quer que a gente fique parado sem fazer nada? — Ironizou Lucas
— Aí, cês não acham que é melhor a gente chamar a polícia? — Bolinha sugeriu.
— Na minha casa não vai rolar não, meu irmão passou uns trotes, eles nem atendem mais o telefone. — Revelou Carlinhos, coçando a cabeça e meio envergonhado pelo irmão mais velho.
— Isso que é ser responsável... Esse cara que ia ficar vigiando a gente lá na praia? — Brincou Diogo.
Enquanto eles ainda falavam, a porta de madeira se abriu sozinha, fazendo um rangido assustador. Os garotos se olharam e a discussão cessou. Depois daquele grito, tudo ficou quieto, quieto até demais. Janelas fechadas, nenhuma luz acesa, e tirando a conversa que tiveram a pouco, barulho algum saía da casa.
Carlinhos engoliu em seco. Era o mais próximo da porta, até hesitou por um instante, mas acabou sendo o primeiro a entrar por ela. Em seguida, os outros também entraram, tremendo na base.
Atravessaram o terraço chamando por Lili, mas novamente nada ouviram em reposta senão os ecos das próprias vozes. Resolveram ir mais a fundo na casa, seguindo em frente toparam com a sala de estar, que estava mais escura por causa das cortinas que cobriam as janelas. Diogo tirou do bolso uma lanterna, e iluminando a sala, o feixe de luz foi revelando o ambiente a medida que ele movia a mão. Conseguiram ver uma poltrona e o sofá, além de retratos pendurados na parede, até que subitamente a TV de tubo foi ligada e eles tomaram um baita susto. Fora do ar, o televisor chiava alto, mas o que arrancou gritos da turma foi uma fotografia da Lili, que jazia na mesa de centro, coberta de manchas vermelhas e o mais perturbador… havia a marca de uma pequena mão no retrato.
— I-isso é... — Diogo tentava formular a frase enquanto sentia a mão tremer.
— S-angue! — Carlinhos concluiu, pouco antes de se benzer. Bolinha começou a mastigar um Baton Garoto nervosamente.
— Es-sa mão... Essa mão é…
— Da boneca da Xuxa! — Lucas completou, sentindo um gélido frio na barriga.
Os meninos mal tinham processado aquilo quando ouviram a voz de Lili outra vez.
— Socorro! — o som chegou até a sala, deixando todos tensos.
Com cuidado, foram juntos na direção do pedido de ajuda, e chegaram ao corredor que dava para as escadas. No meio do caminho, havia uma xícara de achocolatado derramado no chão, além de biscoitos e algumas rosquinhas. Os meninos gelaram quando ouviram ruídos fantasmagóricos de mordidas e, então Diogo voltou a lanterna para trás.
— Q-que foi? — a turma não acreditava no que via.— O que não mata, engorda! — Disse Bolinha, ainda mastigando uma rosquinha e colocando alguns biscoitos no bolso. O ar de riso logo se desfez quando ouviram o bater de uma porta no andar de cima.
A turma subiu cautelosamente os degraus, as pernas tremiam, o suor descia e uma vontade enorme de sair correndo pairava sobre todos, mas a preocupação com a amiga era maior que o medo. Nos últimos degraus tiveram uma visão nefasta de respingos de sangue. O fim da escada levava direto para o quarto de Lili. A porta estava destrancada e entreaberta então os garotos entraram para ver uma cena horrenda, onde todos eles gritaram feito donzelas indefesas.
A porta se fechou bruscamente. A luz do quarto piscava, Lili jazia no estirada no chão, vestia uma camisola branca com uma grande mancha vermelha na barriga, ao seu lado havia uma vela acesa. E igualmente terrível, em pé na frente dela estava a boneca da Xuxa, descabelada e com os olhos negros, segurando na mão uma faca com a ponta suja de sangue.
— VENHAM BRINCAR TAMBÉM BAIXINHOS! — Uma voz terrível assombrou o ambiente, e os garotos continuavam gritando, tentando desesperadamente abrir a porta.
— Alguém ajuda!
— Socorro!
— Deus, eu não quero morrer!
— Eu quero a minha mãe!
Eles se embolaram entre os que tentavam criar forças para correr e os que estavam a beira de um desmaio. Subitamente, Lili se levantou, vivinha da Silva e começou a gargalhar. A porta se abriu e alguém acendeu as luzes do primeiro andar. Fred, o irmão mais velho da garota também apareceu rindo. Vestia uma camisa do Metallica e tinha uma bandana vermelha na cabeça.
— Tomara que ninguém aqui tenha problema no coração... Essa foi pesada! Alguém se borrou? — Empurrou sutilmente a turma pálida e petrificada e ligou o interruptor na parede, iluminando o quarto da irmã. — Certeza que a mãe de vocês vai lavar cueca freiada!
— Ai minha barriga! Eu não aguento... — a menina soluçava de tanto rir da cara dos coitados, que ainda pareciam não entender o que havia acontecido. — A cara de vocês foi impagável! Cê filmou tudo, João? — Um garoto da idade de Fred saiu de trás das cortinas com uma filmadora na mão e erguendo o polegar, entre risos.
Ofegante, Carlinhos se benzeu outra vez. Lucas olhava incrédulo, Bolinha tremia feito vara verde e Diogo estava mais pálido que o Gasparzinho.
— Foi mal se pareceu exagero galerinha... mas em minha defesa, foi tudo ideia dela.— Apontou para a irmã que apagava as velas e se livrara da camisola suja, vestia outra roupa por baixo. — A Lili me falou que vocês tinham medo da boneca, aí eu dei uma mãozinha. — Fred tinha 17 anos, tinha o temperamento forte assim como Lili, seu sonho era ser um artista famoso, então o rapaz cursava teatro e tocava numa banda. Apesar de implicar com a irmã na maioria das vezes, acabou comprando a ideia de fazer aquela pegadinha e chamou dois amigos pra ajudar; João e Érica.
A garota morena saiu debaixo da cama, ela quem fez a voz da boneca, assim como a maquiagem e quem furtou um pouco de sangue falso do teatro para a brilhante pegadinha.
— Mas e aí? Aquele rolê da praia ainda tá de pé? — Lili indagou com um sorriso travesso, cruzando os braços.
…
Depois de todos aqueles sustos, a maior preocupação foi só buscarem os lanches. Os meninos pegaram as bikes enquanto Lili ia junto com seu skate rosa. Fred ainda descolou uma bola de vôlei e foi junto para vigiar os moleques. A turma toda partiu para a praia, ainda aguentando as zoações da loirinha. Correram pela areia e caíram na água. A farofada e as brincadeiras foram garantidas, além de uma ótima história a se contar e dar muita risada depois.
A filmagem feita naquele dia acabou ganhando um modesto prêmio de filmes caseiros, além de edições com versões sombrias das músicas da Xuxa e até acabou chegando uma cópia para a apresentadora. A turma chegou inclusive a receber cartas da própria rainha dos baixinhos e uma menção no programa de TV. Hoje, vídeos da pegadinha podem ser encontradas na internet com o titulo “A Boneca Amaldiçoada."