Capítulos (1 de 1) 10 Nov, 2024

Aqueles que vão morrer...

ROMA, 80 D.C

— Podem ouvir a multidão? Milhares e milhares assistindo, vibrando a cada golpe e ansiando por sangue. Quando se entra naquela arena, a morte é o espetáculo. — montado num puro sangue, Zaki, o velho negro caolho contemplou o Anfiteatro Flaviano, a mais nova maravilha da engenharia romana. Prisco ajeitou-se na carroça, pôs as mãos nas grades de ferro e ergueu a cabeça impressionado. O jovem gaulês de cabelos castanhos jamais vira nada parecido. Um grande estádio construído sobre a antiga Casa Dourada, que havia pertencido à Nero. Com o suicídio do imperador louco, seguiram-se quatro anos de guerra civil até que uma nova dinastia ascendeu ao trono. Tito Flávio Vespasiano era César naqueles dias.

O caminho até Roma fora longo e desconfortável. Prisco dormia sobre palha seca, sentindo o fedor das fezes dos cavalos. Fora capturado em uma campanha militar na Gália, e levado cativo, terminou sendo comprado por Zaki, um mercador africano. A perícia do gaulês com a espada foi o que lhe fez sobreviver entre aqueles que lutavam até a morte para divertir o povo: os gladiadores.

— É um bom lugar para morrer, Prisco. - o mercador tomou seu alforje e deu um gole, pouco antes de jogá-lo para a carroça. — Mas os deuses sabem que você me é mais valioso vivo.

— Cuidado Zaki, ou vamos achar que você se importa. — respondeu Prisco, arrancando alguns risos de seus companheiros de armas. Escravos, prisioneiros de guerra, criminosos e desertores. Um bando de miseráveis esquecidos pelos deuses que se tivessem sorte, poderiam ter algum prestígio ao empunhar os gládios.


De plebeus a nobres, toda Roma acompanhou em polvorosa a inauguração do Coliseu. Após três anos de obras, o imperador Tito decretou cem dias de jogos. Cinquenta mil pessoas ávidas pelas apresentações. Na arena, a poeira subia, pois cavalos puxavam bigas enquanto os cocheiros lutavam com suas rédeas pelo primeiro lugar. Palmas, gritos e ovações misturavam-se na multidão. Apostas eram feitas quando as doze carruagens começaram a corrida, embora o percurso logo se tornasse fatal. Numa curva e outra, os veículos colidiram entre si, e três homens caíram no chão. Um deles gritou de dor com uma perna quebrada, enquanto outro tentou se levantar, acabando por ser pisoteado pelos cascos dos cavalos. Já o terceiro, teve a cabeça esmagada pela biga de um adversário. A areia começava a ser pincelada pelo vermelho vivo de uma exibição soberba e sangrenta. Ao fim, o vencedor saudava a multidão e recebia os louros da vitória ao som de aplausos.


Preso aos grilhões em sua cela, um homem corpulento, de barba e cabelos dourados fechava os olhos e parecia sibilar uma prece. Verus rezava à Odin para que o guiasse na batalha, assim como seus ancestrais. Nascido e criado na Germânia, seu clã fora emboscado pelos romanos durante uma expedição, onde os legionários massacraram os bárbaros que ousavam invadir suas províncias. Mesmo após anos, ainda podia ouvir os gritos e sentir o cheiro da fumaça. Casas a arder em chamas, homens agonizando com as tripas de fora, crianças mortas e mulheres repetidamente violadas. Onde não houvesse submissão, Roma trazia consigo a paz pelo fio da espada.


—Verus… Verus! - O bárbaro saiu de seus devaneios quando alguém tocou seu ombro. - Veja, estão levando o Sófocles. - Um guarda conduzia um homem grisalho pelo corredor até às portas que davam acesso à arena. O grego era o gladiador mais velho do grupo. Olhou para trás e deu um sorriso confiante. Escolheu uma lança como arma e ergueu o punho para cima, elevando o ânimo dos companheiros.

— Mas o que significa isso? Os combates individuais não deviam acontecer tão cedo. - Protestou Assur, um egípcio alto.

— Eles não se importam se vivemos ou morremos. Isso não muda nada. É um mero jogo e nós somos a diversão deles. — Verus afirmou ao cruzar os braços.

Sófocles entrou na arena sentindo o sol sobre seu rosto. Saudou o público e fez a lança rodopiar no ar para causar uma boa primeira impressão. Enquanto caminhava pela areia, se perguntava quem seria seu oponente, um trácio ou talvez um númida, quem sabe até um maldito gaulês como aquele tal de Prisco.

— Ave César! — O grego bradou, curvando-se ao imperador. Vespasiano observava-o com olhos frios e azuis. Um sorriso dançou no rosto do imperador quando seus lábios saborearam um cálice de vinho. Sua cabeça era adornada com uma coroa de louro feita de ouro puro, vestia-se de linho branco e um manto púrpura repousava em seus ombros.


Sófocles levou então o olhar para o outro portão, mas este não foi aberto. Pôde ouvir um rosnado, e de uma porta subterrânea, um tigre branco saltou, levando a multidão ao delírio. O grego logo firmou os pés e manteve a lança em riste com as duas mãos. Já havia matado inúmeros homens em combates, mas nunca uma fera como aquela. O grande felino caminhava de um lado para o outro, espreitando sua presa. Sófocles apertou o cabo de madeira com mais força. Só precisava de um golpe, o animal estava faminto e logo viria em sua direção.

— O que está esperando? Venha maldito! - Gritou ao tigre, e recebeu um grunhido aterrador em resposta. O predador agachou-se e começou a correr. O suor descia-lhe sobre o rosto enraivecido, no peito o coração pulsava como um tambor, e até mesmo ar em seus pulmões parecia mais pesado. Subitamente, outra porta se abriu atrás dele, e dela se ouviu um terrível rugido. Um leão irrompeu na arena. A juba negra agitava-se ao vento e aqueles olhos amarelos tinham sede de sangue. Em seu desespero, o homem grisalho olhou para trás e cambaleou, perdendo o equilíbrio. Quando levantou os olhos, o tigre saltou sobre ele. Seguiu-se um grito e um rugido entre duas espécies no jogo da morte.


Sófocles caiu na areia sentindo o hálito da fera sobre si, as garras pesaram entre seus ombros, e a poderosa mandíbula cravou-se em sua jugular, deixando um longo rastro vermelho. A lança perfurou o ventre do animal, e Sófocles sentiu as forças lhe abandonarem. Talvez estivesse delirando, a nitidez começava a deixar seus olhos. Ele ouvia distante o barulho de espadas. Virou a cabeça e pôde ver um homem a lutar contra o leão. Portava consigo um escudo de madeira e empunhava um gládio. O predador se lançou ao ataque, enquanto seu adversário se esforçava para mantê-lo afastado.


Quando o leão saltou e pôs as duas patas sobre o escudo para derrubá-lo, uma estocada com a lâmina atravessou-lhe o peito. Sófocles viu o gladiador erguer a espada para o alto, ao sol, como se o próprio Hércules saísse das lendas e pisasse naquela arena. Por breves instantes, sua mente vagou para a infância. Lembrou-se de sentar-se junto à fogueira e ouvir sua mãe contar histórias de grandes guerreiros. Pouco depois, se viu caminhando num campo verdejante junto a um riacho de águas cristalinas. Antes de abraçar a morte, o grego sorriu uma última vez.

— Eis aí Prisco, o campeão de Cápua! — Bradou o arauto da arquibancada, enquanto uma chuva de aplausos caía sobre o Coliseu. O gaulês aproximou-se do guerreiro caído, baixou o olhar pesaroso e levou um punho ao peito em reverência.

Os companheiros mais próximos de Sófocles lamentavam sua perda. Alguns choravam, outros amaldiçoavam os deuses, e uns mais contidos, ficaram em um silêncio melancólico. Verus era um desses últimos, embora sua atenção se voltasse para o homem de pé sobre a areia. Por anos o germânico vencera adversários dos mais variados níveis, entretanto, nenhum deles o levou ao limite. Será que agora, depois de tanto tempo, haveria de enfrentar um oponente à altura?



Em meio ao rufar de tambores, a água adentrava no anfiteatro por meio dos múltiplos aquedutos e canais subterrâneos, inundando a arena. Na arquibancada, soldados tocavam trombetas enquanto o arauto caminhava de um lado para o outro, com os braços abertos.

— Cidadãos de Roma! Contemplem a história… nas águas do Mar Jônico, onde César Augusto enfrentou as forças de Marco Antônio numa luta que definiu o futuro do império: A Batalha de Ácio!

Com as velas içadas, quatro barcos navegavam naquele lago artificial, recebidos em festa pela multidão. À bordo, prisioneiros se amontoavam em seis fileiras com remos. Alguns eram gladiadores, outros por sua vez, não passavam de criminosos que ali foram colocados para esvaziar as prisões. Os homens eram guiados por um capitão que berrava seus comandos. As embarcações eram separadas pelas cores de suas bandeiras. Ao final da batalha, apenas um grupo sobraria.

Na margem esquerda, Verus estava em pé na proa, o loiro segurou-se em uma corda, observando a movimentação dos navios inimigos. Um deles tomou a dianteira, virando a estibordo, diminuindo a distância. O gladiador logo notou algo que o fez praguejar. Arqueiros. Ele detestava arqueiros, matavam muitos rapidamente sem sequer chegar perto. Olhando para seus homens, via alguns semblantes temerosos.


—Se querem sobreviver, me escutem! —Verus bradou a sua tripulação. — Se trabalharmos juntos, temos uma chance. Ao meu sinal, ergam os malditos escudos!


Flechas atravessaram o ar, penetrando suas pontas de ferro entre os escudos, no casco do barco e na carne de alguns homens. Um deles caiu na água sangrando, tentou nadar de volta mas alguma coisa o puxou pelo pé. Ele gritou e não mais emergiu. Submersos, crocodilos trazidos do Nilo aguardavam pelo banquete. A batalha seguiu violenta, e o primeiro barco tombou após uma investida avassaladora arquitetada por Verus. Quando as flechas inimigas acabaram, o gladiador ordenou que os homens acionassem as pequenas balistas no convés, onde rochas banhadas com betume eram lançadas. Com poucas faíscas, tais cargas se tornavam bolas de fogo que voavam até os outros navios, destruindo parte do casco e incendiando a embarcação. Quando o barco de Verus se aproximou do outro, ocorreu um frenesi de sangue e fumaça enquanto os homens matavam e morriam sobre o convés. Lanças perfurando estômagos, espadas cortando gargantas, e machados rachando crânios. Quando o último dos inimigos caiu, Verus ergueu o elmo, recebendo vivas e saudações da multidão.



Nas horas seguintes, a arena se preparava para a última atração. Uma luta entre gladiadores fecharia o primeiro dia de jogos. Com um turbante branco sobre a cabeça, Zaki caminhou pelos corredores até chegar até a cela onde Prisco e os homens que sobreviveram descansavam. Na parede, o gaulês escrevia com uma pedra os nomes daqueles que haviam perecido em batalha. Nomes que seriam esquecidos pelo tempo e ninguém os haveria de celebrar. O mercador de escravos ergueu uma mão e começou a lhes falar.

—Alguns lá em cima se acham deuses. Com poder e controle sobre tudo… Mas no derradeiro fim, somos todos mortais e um dia viraremos cinza. — Zaki suspirou. — Por acaso somos peões no tabuleiro do destino? Não acredito nisso. Acredito que até o mais miserável pode ter seu momento de glória.

—Glória? — Prisco indagou ao cruzar os braços. —Não existe glória aqui Zaki, só a morte! — O velho númida olhou para os gladiadores, feridos de corpo e alma, assombrados por perdas e horrores. Por um instante era como se visse a si mesmo, alguns anos mais jovem.

—Você está certo. — Concordou ao menear a cabeça, e então prosseguiu. — Ainda assim Prisco, felizes são os que podem escolher como vão morrer. Em dor e com medo, ou com honra e coragem. Fui escravo a maior parte da vida, e nas arenas moldei meu destino. Ganhei a liberdade não por malditos deuses, mas pela minha espada. Aqueles que se foram perseguiam sonhos e esperanças, não podemos fazer menos que isso. Então lutem por suas vidas, lutem como demônios até que só reste o som da multidão a gritar os seus nomes.


Prisco e Verus foram convocados a sair de suas celas. O gaulês vestia uma armadura de couro negro feita em seu país, com um galo prateado ao centro. Já Verus usava uma couraça vermelha com a águia de Roma em seu peito. Lado a lado, os dois homens subiam as escadas até a arena, sentindo o coro de vozes ressoar pelas paredes. Trocaram apenas alguns olhares. Havia ali uma rivalidade com um pouco de respeito.

Na tribuna, o arauto se ergueu mais uma vez, levantando a voz num tom dramático. O anúncio pelo qual a maioria dos espectadores aguardava finalmente foi revelado.

— Povo de Roma! — o homem abriu os braços. - Este é o primeiro dia desta arena que ficará marcada para sempre! Mas reservamos o melhor para o final. O imperador em pessoa organizou os preparativos para essa luta. Sim, Prisco e Verus! Dois campeões invictos, dois heróis das arenas num duelo até a morte!

— Aqueles que vão morrer, te saúdam! — Os gladiadores saudaram o imperador, poucos antes de se encararem para a batalha onde apenas um deles sairia com vida.

Munido com a lança, Verus tomou a dianteira com passos rápidos e fez o primeiro ataque. A ponta estocou contra Prisco, que aparou o golpe com o escudo. O germânico o pressionava com golpes fortes, mas a agilidade do gaulês fazia jus a sua fama. As lanças chegavam a se cruzar, mas nenhum dos dois concedia abertura para um golpe fatal. Quando o loiro fez uma investida lateral, o cabo de madeira de Prisco colidiu com o metal do escudo, partindo sua lança.


Percebendo sua vantagem, Verus irrompeu para perfurá-lo, mas seu adversário rolou no chão, escapando do ataque. Prisco desembainhou seu gládio. Veloz, a espada do gaulês o perseguia, fazendo o germânico ficar na defensiva. Num golpe forte, a lança de Verus quebrou, e num movimento rápido, ele desviou de uma estocada certeira. Ambos agora lutavam com as espadas. Os metais colidiam e cortavam o ar, enquanto a plateia assistia em êxtase, com muitos já acompanhando o embate em pé. E até mesmo o imperador não conseguia tirar os olhos da arena.


Ofegantes, os adversários se estudavam, cada golpe poderia ser o último. A lâmina de Prisco assobiou no flanco direito, e Verus grunhiu ao ter o ombro atingido. No entanto, o germânico contra-atacou, acertando o gaulês em cheio com o escudo. Prisco caiu com a boca ensanguentada, e ainda no chão, escapou da espada inimiga que foi cravada na areia do Coliseu. Verus foi surpreendido com um chute e foi derrubado. Numa demonstração de resistência impressionante, os homens logo se levantaram com os gládios em punho. As lâminas dos dois voltaram a se cruzar, e a torcida foi dividida por aqueles guerreiros que lutavam como animais. O cansaço começou a vir à tona, gerando algumas aberturas com ambos feridos. Entretanto, o golpe definitivo custava a chegar, para alegria do público que estava completamente envolvido pela luta.


Com os escudos e os gládios caídos durante o combate, o duelo seguiu-se numa luta corpo a corpo. E desta maneira veio o inesperado: Prisco acertou um soco no queixo e Vero lhe atingiu com o cotovelo no rosto ao mesmo tempo. Entre suor e sangue, ambos caíram sobre a areia após os golpes. Cortes e hematomas marcavam seus corpos. Esgotados, nenhum dos dois conseguiu levantar. E então os gladiadores ergueram as mãos. Dois sinais de rendição, dois pedidos por clemência.


Sucedeu-se uma polvorosa de aplausos e gritos pela vida dos homens, a multidão os celebrava como deuses da arena. O imperador se ergueu da cadeira em meio ao clamor do povo, levou o indicador aos lábios, demandando um silêncio que logo se tornou inquietante. O César estendeu sua destra e fechou o punho, deixando apenas o polegar para fora. Ainda caídos sobre a areia do Coliseu, Prisco e Verus observavam o imperador de pé, ambos lutaram até o fim, com tudo que tinham. Iguais a lutar, iguais a ceder. Desafiaram a morte, cortejaram-na e estavam prontos para beijá-la. Tito Vespasiano então subiu o polegar, fazendo a arena vibrar em regozijo como se o coração de Roma estivesse a pulsar. Aos dois gladiadores foi concedido um rúdio, uma espada de madeira que simbolizava sua liberdade. Este foi o primeiro dia do Coliseu, um símbolo de Roma, um monumento para a eternidade.

                                                                                                                                   FIM

                                                                                                               

*Este conto é baseado nos escritos do poeta Marcus Valerius Marcial, onde ele relata a inauguração do Coliseu no Livro dos Espetáculos, no qual o duelo entre Prisco e Verus é o único registro detalhado de um combate de gladiadores que chegou aos nossos dias.

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